'Tive burnout como camgirl e precisei aprender a viver em minha personagem'
Se arrumar, montar um ambiente e dar o play na live. Pode parecer simples, mas, na vida de uma camgirl, alguns "lubrificantes" profissionais facilitam na hora de lidar com clientes e levantar sua grana: respeito e um bocado de tesão. Sem isso, a paulistana Laís Souza, de 25 anos, se viu em um processo de burnout. À frente das câmeras, ela atende por Lorie, em uma separação de identidades que passou a lhe fazer mais mal do que bem.
A história de Laís vem de antes do OnlyFans surgir com promessas de verter rios de dinheiro para os "criadores de conteúdo" - que depois se veria que seria quase sempre adulto. Com um gosto para autorretratos artísticos e nudes conceituais, ela usou o seu próprio Instagram para vender fotos.
Há cinco anos, a estudante universitária cursava psicologia, mas não conseguia ganhar para trabalhar na área. Em paralelo, tirava suas fotos. "Eu achava bonito, artístico e aí tive a ideia de criar um perfil no Instagram pra postar. Eu não esperava, mas começou uma galera a me seguir e falar: 'Nossa, você tem talento, faz um curso de fotografia', ou 'Nossa, por que você não vende isso?'", contou Laís, a Universa.
Aproveitando-se de uma fase menos "chata" da rede social, em que suas fotos não derrubavam o perfil, ela montou um esquema semanal de conteúdo: selecionava cerca de 10 pessoas, quase como um "melhores amigos", e produzia material exclusivo, já mais explícito.
A cada semana, o grupo ia mudando. Começando com "assinaturas" a partir de R$ 50, logo ela tirava R$ 1 mil por mês, o que em meses melhores chegava a R$ 3 mil.
E agora? Surge Lorie
Laís não tinha constância no trabalho e via que precisava dar um próximo passo para se profissionalizar. À época, pouco se falava sobre o que é ser uma camgirl, atuando em vídeo, ao vivo, diretamente com os clientes, e ela se arriscou sozinha, contando apenas com vídeos de outras garotas que comentavam suas experiências no YouTube. Coincidiu ainda o fato de ela ter o Instagram derrubado e precisar se mexer para salvar o ganha-pão.
Apoiada por um namorado da época, ela apostou no Câmera Privê como plataforma. Um passo inicial foi construir uma "personagem" para atuar na frente da câmera, ao vivo, o que já era uma grande novidade em relação ao que ela produzia "on demand".
Laís encontrou em uma personagem de um livro sua inspiração. Lorie tinha uma sexualidade parecida com a dela e um nome curto, elegante e nada escrachado. As primeiras vezes online foram despretensiosas: "Aparecia comendo pipoca, pizza...", ri ela. "Precisei aprender fazendo, porque não sabia para onde olhar, onde colocar a perna."
Laís viu cedo que a vida não era fácil e o jogo de cintura seria sua maior arma - ainda que fosse demorar a conseguir dominar as ações. O primeiro cliente para um papo em separado foi agradável e receptivo. O segundo, percebendo que se tratava de uma iniciante, fez o oposto.
Quando percebem que você é nova, rola um negócio de te virarem do avesso, porque eles sabem que você ainda não entende o que faz. Então, abusam da sua boa vontade. Esse segundo fez jus ao dinheiro que gastou. Falou pra pegar leite condensado na geladeira, passar pelo corpo. Meu Deus, que chat horrível.
Foi com a mentalidade de que "ser camgirl talvez seja isso" que Laís viu sua página crescer e conseguiu se estabilizar no site.
"Eu me pegava o tempo inteiro pensando: 'Nossa, será que eu estou só me divertindo e ganhando? Será que isso um trabalho? Será que as pessoas consideram isso um trabalho?' Então, eu estava sempre me julgando também", conta ela.
Do autojulgamento ao burn out
O limite entre ganhar dinheiro e se sentir realizada e com tesão à frente da câmera pode ser tênue. "Eu encarei assim quando: 'Este é meu trabalho e como ganho meu dinheiro, então, vou fazer o que me pedirem'. Nunca fui de fazer coisas absurdas, mas meu prazer não era o objetivo".
Nestes casos, vestir um personagem ajudou a maquiar os incômodos. Até que o preço foi cobrado.
"Foi um processo de burnout e, aos poucos, fui perdendo completamente o tesão de me arrumar, ficar gata e logar pra conversar. Fui ficando de saco cheio mesmo. Muita gente sem educação, muita gente que passa completamente do limite com você. Sem nem estar te pagando", conta ela, explicando que parte da interação com os clientes do site é grátis - brindes e papos exclusivos são pagos à parte.
Laís lembra que a intimidade que uma camgirl se dispõe a compartilhar é muito diferente outros tipos de trabalho: "ninguém vai mandar você enfiar um pepino nos seus orifícios". Por isso, batalhar pelos limites é um exercício diário - mesmo para quem curte trabalhar com material mais explícito.
"Se você não impõe um limite, vai se desgastar a ponto de não conseguir ligar a câmera, ver um cliente. Vai sentir ódio, nojo. Foi nesse ponto que cheguei. Encarei como trabalho da forma errada. E acho que isso faz mal pra muitas meninas até hoje", explica ela, que só tinha um ano e meio no Câmera Privê.
Laís + Lorie - e muita terapia
Como já havia trancado a faculdade por ter criado novos interesses e o camming era seu trabalho "real-oficial", Laís sabia que não tinha como apenas desistir. Assim, ela passou por um processo de ressignificar o trabalho e encontrar referências na profissão. Hoje em dia há camgirls das antigas que oferecem cursos e mentorias, para evitar casos como o dela - que muitas vezes chegam a depressão e à desistência do camming.
Além disso, fazer terapia ajudou em um processo de quase um ano de readaptações e reorganizar seus interesses. Mais que isso, ela precisou entender que, apesar de sempre ter lidado bem com sua sexualidade, havia mais a conhecer de si, como Laís. para que seu trabalho também fosse uma experiência transformadora.
"Antes eu me considerava uma mulher feminista por estar 'fazendo o que eu quero'. E estava entrando o dia inteiro nessa coisa de atender homem, de fazer vontades dos caras e passando por cima das minhas, com aquela carinha de paisagem, sendo simpática e sem falar não".
Uma ficha caiu quando Laís percebeu que se aproximava mais de Lorie do que pensava, e que as duas podiam coexistir. Com a ajuda de outra profissional com duas décadas de camming, ela entendeu que podia respeitar suas vontades e aceitar seus limites. "Você já não tá na merda? Então tenta", aconselhou Janaína Barbosa, que hoje dá cursos sobre a profissão.
Foi dolorido isso de abandonar o personagem que eu tinha criado até aquele momento. Foi tenso, mas fui me reconstruindo aos poucos, entendendo o meu lugar no site, entendendo como eu queria ser tratada, principalmente. Laís
Hoje, além do camming, Laís estuda fotografia e cinema. O interesse nessas áreas não surge só nas fotos e vídeos sensuais que grava, mas na relação com seus clientes.
Por se posicionar de outra forma, inclusive nas fotos e descrições exibidas no site, outros tipos de clientes surgiram. Quem chegava apenas para ver um peito, era recusado. "O principal que eu estava buscando era conforto e respeito. Queria muito ser bem tratada, ser respeitada e encontrar pessoas que tinham os mesmos interesses ali".
Hoje é mais comum ver "Lorie" em ação batendo papo sobre cinema e arte com um cliente do que fazendo peripécias sexuais.
Eu fui colocando coisas da Laís para a Lorie. Antes, não tinha muito essa relação, era uma coisa muito longe. Eu separei muito ela, porque a Lorie era só a putaria. E eu fiz essa junção. Por que a Lorie sou eu. Eu preciso me sentir bem dentro dela. Hoje o diálogo é o ponto forte do meu chat, agora. A conversa, a troca. Seja ela sexual, que agora não é mais tanto, ou na forma de companhia, de acolhimento. Aprendi que cliente não procura um peito, uma bunda: ele procura uma emoção.