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'Me batiam, pesei 32 kg e quase morri': ela se formou para mudar a escola

Yasmin chegou a pesar 32 kg; ela se formou em pedagogia e quer trabalhar com olhar voltado para o bem-estar das crianças  - Arquivo pessoal
Yasmin chegou a pesar 32 kg; ela se formou em pedagogia e quer trabalhar com olhar voltado para o bem-estar das crianças Imagem: Arquivo pessoal

Camila Corsini

De Universa, em São Paulo

20/04/2023 04h00

A decisão de Yasmin Rosa Martinez, de 22 anos, pela faculdade de pedagogia não foi por acaso: desde muito pequena, ela sofreu bullying nas escolas em que estudou por causa do seu corpo.

Anos depois, foi diagnosticada com anorexia e bulimia e chegou a pesar 32 kg. Recuperou-se com a ajuda da família e, até hoje, tenta se olhar no espelho sem se odiar. De volta à sala de aula, quer ser a professora que não teve. A Universa, Yasmin conta sua história.

"Desde pequena, quando entrei na escola, sofri bastante bullying — principalmente por causa do meu corpo. Me excluíam, batiam e me deixavam de lado.

Eu odiava ir para a escola e era o pior lugar do mundo para mim. Cresci odiando o meu corpo e aprendi a me achar a pessoa mais feia por causa dele.

E, conforme eu crescia, pior a violência ficou. No começo era física. Na adolescência isso não parou, e foi para o ambiente online também

Até o 6.º ano, estudei em escola pública. Ali, o bullying era mais pelo meu corpo e aparência. Depois, consegui uma bolsa em um colégio particular — onde fiquei até o ensino médio. Lá eu também sofria pela minha situação financeira, por ser bolsista.

Yasmin - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Desenho de Yasmin na escola; críticas sobre o corpo a levaram a buscar dietas desde os 6 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Comecei a querer emagrecer o mais rápido possível aos seis anos, bem pequena. Procurei nutricionista, mas sentia que não era suficiente — eu não parava de ser zoada pelos meus colegas. E não é do meu biotipo ser magrinha, então eu nunca conseguia me encaixar no padrão.

Com uns 10 anos, pesquisei dietas mais fortes e restritivas. Caí em sites sobre bulimia e comecei a forçar o vômito. Entre os 11 e 12 anos, isso piorou. Fui parando de comer, fazendo cada vez mais exercícios físicos. Aos 14 anos, tinha anorexia e bulimia.

Neste momento, percebi que a violência acabou. Pararam de me zoar e começaram a elogiar. Ninguém sabia o que estava acontecendo, mas falavam que eu estava linda e me parabenizavam

'Para mim, estava comendo muito'

Cheguei a pesar 32 quilos e tenho 1,58 metro de altura. Minha pressão ficava sempre baixa e meus batimentos cardíacos também. Estava quase morrendo. Minha família ficou desesperada.

Quem está com essa doença nunca percebe. O mundo inteiro estava errado e só eu estava certa. Meus pais falavam que eu estava magra demais e comendo pouco. Para mim, estava gorda e comendo muito.

A gente brigava muito e eles começaram a tirar fotos minhas escondidas para eu ver que tinha algo errado. Quando eu me via no espelho, não via o meu corpo. Sem isso, não teria enxergado sozinha

Na época, tentei me consultar com um psicólogo pelo SUS, mas não deu certo. Depois, conseguimos um de graça. Mas ele misturou meu problema com coisas de religião, falava que não era de Deus, e eu me sentia mais culpada ainda. Não deu certo.

Fui melhorando sozinha. Tive uma professora no ensino médio que também teve distúrbios alimentares, e ela me ajudava bastante. Fazia comidinhas para mim, vinha na minha casa. Ela foi muito importante.

O problema do transtorno alimentar é que, depois da anorexia, ele pode voltar em compulsão alimentar. Então, com 17 anos, eu engordei bastante, e o bullying retornou.

Estava me curando de uma doença em que eu quase tinha morrido e as pessoas falavam que eu tinha fracassado. Foi tudo muito difícil

Aos poucos, fui tentando me amar. É um processo diário. Hoje vivo com mais equilíbrio.

'Eles fazem isso porque você é gorda'

Sentia que os professores eram totalmente despreparados para lidar com tudo isso. Quando sofri violência dentro da sala de aula, eles não falavam absolutamente nada.

Tive uma professora que chegou a me culpar. Ela falou: 'Eles fazem isso porque você é gorda. Por que você não emagrece?'.

E vi isso acontecer também com outros alunos, em contextos de racismo e homofobia. Quando eu pedia ajuda para a diretoria ou outros adultos, não tinha apoio algum — nem psicólogo ou equipe de amparo.

Yasmin - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Yasmin quando criança; na escola, ela sofreu violência por causa do seu corpo
Imagem: Arquivo pessoal

Foi daí que veio minha vontade de cursar pedagogia: poder fazer algo diferente. Se eu tivesse alguém lá por mim, não teria passado por tanta coisa. Não teria sofrido tanto.

Vi falhas na educação, no geral, e esse é o único caminho para mudar as coisas para melhor. Queria evitar que alguém passasse pelo que eu passei.

'Sobrevivi e vou cumprir minha missão'

Foram quatro anos de formação no curso de pedagogia. A gente entra achando que vai mudar o mundo, mas a realidade é dura. É um trabalho de formiguinha, um dia de cada vez. Conseguir mudar pequenos mundos já está ótimo.

Fiz meu primeiro estágio em uma das escolas em que sofri bullying quando criança, e foi um processo de catarse. Eu estava ali, do outro lado — não mais criança, mas professora. Eu senti: sobrevivi e vou cumprir minha missão

Já vi crianças sofrendo bullying e, dessa vez, pude intervir. Pude fazer cartazes [com os alunos], falar sobre isso, sobre a minha experiência ali. Na outra escola em que estudei, também pude revisitar tudo o que eu passei.

No curso de pedagogia, não existia palestra ou outro tipo de formação que nos preparasse, como profissionais, para lidar com essas questões de bullying ou violência em sala de aula. Seria muito importante que tivesse.

'Quebrar o ciclo'

Quando você passa pelo bullying, pode escolher pegar esse ódio que jogaram contra você e odiar a si mesmo ou ao mundo — ou olhar para isso e quebrar o ciclo, evitar que outros se sintam mal.

Temos de tentar pegar nossa pior dor e transformar na nossa maior luta. E foi isso que eu fiz.

Não existe uma cura, todos os dias eu tento comer direito e não me cobrar. Ainda tenho distorção de imagem e sei que o que eu vejo no espelho não é real

Todos os dias eu tento olhar para o espelho e não me odiar, me tratar com carinho. Sei que isso existe dentro de mim e tento superar todos os dias. Sei que sou mais forte do que isso."

Entenda a anorexia e bulimia

  • Anorexia e bulimia são transtornos alimentares. Na anorexia, existe uma fixação pela magreza extrema e longos jejuns; já a bulimia, via de regra, inicia-se com uma compulsão alimentar seguida de esforços para eliminar o que foi comido por impulso.
  • Não há uma causa única para o transtorno, mas alguns fatores podem aumentar a predisposição, como história familiar de transtorno alimentar, baixa auto estima, perfeccionismo e dificuldade em expressar emoções. O bullying também pode estar associado a sintomas de anorexia e bulimia. Dietas restritivas servem de gatilho.
  • Os quadros podem levar à morte se não tratados. Em São Paulo, um dos centros de referência para transtornos alimentares é o Ambulim, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).