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Ela trocou o marido abusivo pela vizinha: 'Fiquei chocada, mas era amor'

Regilene (à direita) decidiu se declarar para a vizinha, Irislandia, há 11 anos - Arquivo Pessoal
Regilene (à direita) decidiu se declarar para a vizinha, Irislandia, há 11 anos Imagem: Arquivo Pessoal

Maurício Businari

Colaboração para Universa

04/04/2023 04h00

Por 21 anos, a professora Irislandia Socorro Sousa dos Santos, 51, sofreu nas mãos de um marido abusivo e alcoólatra. Apanhou, foi humilhada publicamente e ameaçada de morte. Até que um dia, sem sequer imaginar, descobriu o amor com a autônoma Regilene Costa Almeida, 45, sua vizinha, que morava na casa ao lado.

Regilene mora há 26 anos em uma casa na região central de Macapá, no Amapá, com os dois filhos. Ela viveu com o ex-marido durante dois anos, até que o casal resolveu se separar e ele se mudou.

Desde então, ela passou a cuidar sozinha das crianças. Para sustentá-las, Regilene trabalhava como autônoma vendendo roupas e alimentos e confeccionando peças de artesanato.

Anos depois, ganhou uma nova vizinha: era Irislandia, que se mudou para a casa ao lado, com o marido e um casal de filhos.

As duas se conheciam de vista e levaram muito tempo para iniciar uma conversa.

"Era só bom dia, como vai?", lembra a autônoma. "Nossos filhos é que fizeram amizade antes, brincavam juntos. Até que, um dia, uma amiga em comum, a Dayane, começou a chamar nós duas para irmos à casa dela. Foi aí que começamos a conversar."

Após assumirem a relação, Regilene e Irislandia enfrentaram juntas o preconceito - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Após assumirem a relação, Regilene e Irislandia enfrentaram juntas o preconceito
Imagem: Arquivo Pessoal

Mudar para a casa nova não melhorou o relacionamento de Irislandia com o marido. Ele continuava a beber e se tornou cada vez mais agressivo.

Era Irislandia quem sustentava a casa, trabalhando como professora em uma escola estadual, enquanto ele vivia uma vida de solteiro, a traindo constantemente.

Se eu não deixasse almoço pronto para ele, ele me pegava na porta da escola e me agredia verbalmente. Eu ficava em silêncio, tinha medo de contar para alguém o que acontecia. E sentia muita vergonha. Ele também descontava muito nas crianças, então eu evitava aborrecê-lo
Irislandia

Ela quis se separar por diversas vezes, mas o marido a ameaçava diariamente, dizendo que ela jamais conseguiria manter um relacionamento com outra pessoa, porque ele impediria. E também a chantageava com relação à guarda das crianças.

Irislandia conta que acreditava que só a família dele sabia das agressões. Ela não imaginava, que, à medida que o tempo passava, mais e mais pessoas que conviviam com ela passaram a desconfiar da violência doméstica. Inclusive a vizinha Regilene.

Sempre tive um relacionamento bom com meu ex-marido. Ele era de boa. Mas o ex da Irislandia não era, não. Ele era agressivo, violento. Eu sabia o que estava acontecendo e, com o tempo, ela foi se abrindo. Não sei como, mas chegou um momento em que me apaixonei por ela
Regilene

Durante um tempo, Regilene escondeu o que sentia pela vizinha. Como ela própria não entendia o que estava acontecendo para que nutrisse um sentimento forte por Irislandia, temia que a vizinha também não compreendesse e acabasse desfazendo a amizade.

Porém, ao desabafar com Dayane, a amiga em comum, acabou incentivada a demonstrar seus sentimentos.

"Eu fiquei sem dormir, não sabia o que pensar. Nunca tinha me relacionado com uma mulher antes", conta Regilene.

"Aí um dia estávamos todas na casa da Iris, tomando frozens (espécie de drinque), e eu criei coragem e disse para ela: 'Iris, eu estou gostando de você, estou apaixonada'. Mas ela fez uma cara estranha, parecia assustada. Passou um tempinho, eu falei que queria beijá-la. E ela negou."

Irislandia explica como se sentiu naquele momento.

Fiquei chocada quando ela se declarou. Não sabia o que pensar na hora. Ela foi casada, eu era casada, tínhamos filhos. Eu nunca tinha pensado que isso pudesse acontecer entre a gente. Mas já estávamos tão próximas, sabíamos tudo uma da outra...
Irislandia

Regilene não desistiu. Dias depois, deixaram os filhos na casa de sua mãe e saíram para tomar caipirinhas em uma praça da cidade. Nesse dia, "com o coração saindo pela boca", elas se beijaram pela primeira vez.

"No começo, não entendia exatamente o que sentia por ela. Mas, com o tempo, acabei descobrindo que era amor", diz Irislandia.

Os filhos do casal tiveram dificuldades para entender a relação das mães no início, mas com o tempo se tornaram os maiores apoiadores - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Os filhos do casal tiveram dificuldades para entender a relação das mães no início, mas com o tempo se tornaram os maiores apoiadores
Imagem: Arquivo Pessoal

Preconceito

A partir daí, decidiram ficar juntas e enfrentar "o que fosse preciso" para manter o relacionamento.

Irislandia pediu a separação após o ex-marido espancá-la na porta de casa, com várias testemunhas. Quando ele ficou sabendo, a difamou de todas as formas e elas passaram a enfrentar o preconceito de muitas pessoas.

Ele a impediu de ficar na casa e ela iniciou um lento processo de separação litigiosa na Justiça. Irislandia então decidiu morar com a vizinha. Deixou a residência onde viveu com o ex-marido por muitos anos, com apenas uma mala e algumas peças de roupas, e foi morar na casa da companheira.

"Nossos filhos também tiveram problemas em aceitar", lembra a professora. "Os dois mais velhos já sabiam e estavam tentando lidar com a situação, mas os dois mais novos ainda não sabiam, ficaram sabendo porque alguns coleguinhas os provocaram um dia, dizendo que as mães deles eram sapatões. Conversamos muito com eles, de um jeito que eles entendessem melhor. Deu certo."

Regilene lembra que, para a mãe, o impacto da notícia foi forte. Ela ficou uma semana sem falar com a filha. Já a mãe da professora ficou mais de um ano sem falar com ela. Na escola, Iris também enfrentou brincadeiras maldosas de alunos e olhares atravessados de professores.

Dos amigos, apenas alguns se afastaram. Porém, à medida que a notícia do romance entre as vizinhas deixava de ser novidade, os problemas diminuíam e hoje elas têm muitos casais de amigos, em sua maioria heterossexuais.

"Queremos envelhecer juntas", afirma Irislandia. "Temos uma família linda, vivemos esses anos todos cuidando e educando nossos filhos e já temos um netinho, o Bernardo, que ama as vovós. Ele nos traz muita alegria".

Casar e viajar

Atualmente, as duas vivem em união estável, mas têm planos de oficializar o casamento no civil, como prova de "amor eterno" e para a garantia dos direitos de ambas. Elas comemoraram 11 anos juntas no dia 30 de março.

Como a professora está prestes a se aposentar, os planos também incluem viajar para outros locais do Brasil, distantes do Amapá. Os filhos já são adultos, e a ideia é encontrar um lugar em que possam viver felizes, até que a morte as separe.

"Nosso amor vai muito além da atração física, da paixão", declara Regilene.

É um encontro de almas. Com certeza a gente já se conhecia de outras vidas, porque o que aconteceu a gente não sabe explicar. Nunca tivemos, nem eu nem Iris, experiências homossexuais. Então a gente ficar juntas foi coisa do destino mesmo

"Eu hoje digo que, na minha relação com meu ex-marido, eu estava construindo um castelo de areia, que o mar a qualquer momento podia derrubar. Mas a minha relação com a Regilene é sólida, os alicerces são de concreto. Começou com uma amizade muito forte e se transformou em amor. Na base da confiança, do respeito. Hoje não nos imaginamos uma longe da outra. Eu não saberia viver sem ela", diz Irislandia.

Como denunciar violência

Ao presenciar um episódio de agressão contra mulheres, ligue para 180 e denuncie.

Casos de violência doméstica são, na maior parte das vezes, cometidos por parceiros ou ex-companheiros das mulheres, mas a Lei Maria da Penha também pode ser aplicada em agressões cometidas por familiares.

É possível realizar denúncias pelo número 180 — a Central de Atendimento à Mulher, que funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.

A denúncia também pode ser feita pelo Disque 100, que apura violações aos direitos humanos. Há ainda o aplicativo Direitos Humanos Brasil e a página da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia em até seis meses.

Caso esteja se sentindo em risco, a vítima pode solicitar uma medida protetiva de urgência.