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'Brasil, como Estados Unidos, foi fabricado na escravidão', diz americana

Autora norte-americana Saidiya Hartman estuda "sobrevida da escravidão" e é professora na Universidade de Columbia, em Nova York  - Steven Gregory/Divulgação
Autora norte-americana Saidiya Hartman estuda "sobrevida da escravidão" e é professora na Universidade de Columbia, em Nova York Imagem: Steven Gregory/Divulgação

Cristina Fibe

Colaboração para Universa, no Rio de Janeiro

22/11/2022 04h00

A caminho do Brasil para a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que começa nesta quarta-feira (23), a escritora americana Saidiya Hartman, uma das principais referências no estudo sobre a história da escravidão, quer fazer suas roupas caberem numa mala de mão. Isso porque pretende voltar com uma bagagem maior, só de livros, para conhecer as autoras e os autores brasileiros que ainda não leu.

Está ansiosa para conhecer o trabalho de nomes como Djamila Ribeiro, filósofa e escritora que mediará a mesa de Saidiya na Flip, no sábado (26).

A professora de inglês e literatura comparada da Universidade de Columbia, em Nova York, é reconhecida como a autora que revolucionou a maneira como a história da diáspora africana —ou de como a população negra foi sequestrada da África e escravizada ao redor do mundo— é contada.

O Brasil a descobriu recentemente. Em "Perder a Mãe", por aqui desde novembro de 2021 e publicado pela Bazar do Tempo, a escritora faz um mergulho pessoal no tema e sacramenta seu método de "fabulação crítica": usa da sua imaginação para preencher os buracos de informação dos arquivos oficiais e históricos, nos quais pessoas negras são tratadas como não humanas. Ou, simplesmente, desapareceram.

Saidiya —pronuncia-se "Saidía"— é uma palavra de origem suaíli, língua falada em alguns países do continente africano, que significa "ajuda" e foi a escolha da escritora para substituir seu nome de batismo, Valarie, europeu demais para carregar consigo.

Na visita ao Brasil, ela também celebra o lançamento de um livro que reúne dois de seus ensaios: "A Sedução e as Artimanhas do Poder" (1996) e "O Ventre do Mundo: uma Nota Sobre os Trabalhos das Mulheres Negras" (2016), ambos da editora Crocodilo.

Antes, em abril deste ano, teve mais lançamento: a editora Fósforo publicou "Vidas Rebeldes, Belos Experimentos", vencedor do National Book Critics Circle Award, que premia as melhores obras em inglês do mundo.

Dias antes de vir ao Brasil, a autora conversou com Universa por vídeo. Leia os principais trechos da conversa.

UNIVERSA - Por que "preencher" histórias de pessoas escravizadas?
Saidiya Hartman - O método surgiu em "Perder a Mãe", especificamente no capítulo "O Livro dos Mortos". Estava lendo um processo judicial do arquivo britânico e me deparei com uma menção a uma jovem que havia sido assassinada a bordo de um navio negreiro. Rastreei o caso e encontrei várias versões mas, em nenhuma delas, a garota tinha voz. Na transcrição legal não havia nem o nome. Ela foi descrita no processo como 'a triste garota negra', e o capitão a descreveu com comentários como 'a cadela está amuada'. Esse era todo o arquivo para tentar reconstruir a vida dessa jovem. O que fiz foi usar os vários elementos do julgamento como pontos de vista --europeus, da tripulação e da seguradora. Para a garota, procurei construir uma narrativa a partir da experiência corporal.

Como fez isso?
Sabemos que ela passou fome por 21 dias antes de morrer. Então, li estudos sobre fome, sobre a fome no gueto de Varsóvia. O que acontece com a mente quando você deixa o corpo faminto, o tipo de alucinação que se tem, o tipo de esvaziamento, mas também a sensação de grandeza. Esse foi um conjunto de experiências físicas que usei para construir a narrativa. E um amigo, médico, me ajudou a descrever em detalhes o que acontece com o corpo quando você está suspenso, pendurado por um membro. Como o sangue corre? O que acontece com o membro? E foi assim. Usei ainda frases que descrevem a vida de mulheres escravizadas a bordo desses navios, descrições de médicos sobre o destino daqueles abaixo do convés, para tentar construir sua experiência.

Qual a importância de recriar uma história que desapareceu?
A fabulação crítica envolve pesquisa de arquivo com especulação e imaginação. E, para mim, há uma obrigação ética de fazer isso. Sabemos muito sobre o comércio de pessoas como um negócio, como motor do desenvolvimento capitalista, do desenvolvimento das Américas, mas sabemos muito pouco sobre a vida dos escravizados. Com aquele caso, fui levada a cruzar uma linha, ir além do meu treinamento disciplinar, para ver se poderia cuidar da vida dela de uma forma que fosse um pequeno ato de reparação. Mas a reparação no nível da narrativa, não a reparação no nível social, da lei. A própria escrita como um tipo de ato reparador.


A reparação da narrativa pode ser um instrumento para evitar futuras violências do mesmo tipo?
Soaria um pouco arrogante se eu imaginasse que meus próprios atos fossem capazes de oferecer essa reparação. Existe uma relação ética entre um escritor e o seu personagem, a pessoa com quem se está escrevendo. Nesse sentido, a minha dedicação à vida dessa garota foi pequena, foi um pequeno ato de reparação.

E quanto à literatura no geral: pode frear injustiças e conservadorismo?
Infelizmente, não acho que haja esse poder de mudar o rumo da história. O que a literatura é capaz de fazer é criar as condições para um engajamento crítico no mundo. Há muitos trabalhos brilhantes escritos sobre a violência do capitalismo, a brutalidade da escravidão racial e do colonialismo, histórias brilhantes do fascismo. E, no entanto, estamos em um momento em que o fascismo está como que ascendendo no horizonte nas Américas e na Europa.

Como seu trabalho se relaciona com a produção de conhecimento sem uma visão colonial?
Nossa imaginação sobre a experiência da escravidão transatlântica ainda é determinada pelos comerciantes, pelos fazendeiros, pelas elites. Para contar a história daquela menina que morreu no navio, tive que desconstruir essas fontes largamente consideradas objetivas. Os arquivos históricos são como se fossem uma lei que rege o que pode ser dito. Mas isso muda radicalmente quando os cativos estão em primeiro plano, em oposição aos mercadores ou ao capitão do navio.

Vê similaridade entre as histórias do Brasil e dos Estados Unidos em relação à escravidão?
O Brasil, assim como os Estados Unidos, é uma sociedade fabricada pela escravidão. É todo o nosso legado. Todos nós somos produzidos por essa instituição.

O que falta às pessoas brancas entenderem sobre esse período da história?
Que alguns de nós carregamos o fardo da escravidão, e outros ficam com os benefícios, os lucros, o poder, tudo o que foi possibilitado por ele, até hoje. Ando pensando muito nisso. Há muitos projetos de estudos sobre produção de riqueza e raça, por exemplo: transmissão e reprodução da riqueza, a extração e perda da riqueza negra.

No Brasil, falamos muito em racismo estrutural, que se manifesta por ações nem sempre explicitamente racistas sob o ponto de vista das pessoas brancas. Como isso aparece nos EUA?
Se eu for vender minha casa, por exemplo, o que tenho de fazer é tirar todas as pinturas da África ou fotos dos meus pais. Vou chamar meu amigo branco, vou colocar as fotos de sua família e chamá-los ao local quando mostrar minha casa. Porque isso pode ser um diferencial de até US$ 300 mil a mais para a mesma propriedade. Essas fórmulas raciais ainda são questões determinantes, e elas têm grandes consequências financeiras. Isso também está relacionado a decolonizar o conhecimento.

O que espera da Flip?
Os escritores que vou conhecer são os brasileiros ou os negros. Já conheço a Annie Ernaux [vencedora do Nobel de Literatura de 2022], o chileno Benjamin Labatut, porque esses são os escritores que circulam, seus nomes são familiares. E é por isso que estou realmente ansiosa para conhecer escritores e escritoras com quem tenho muito em comum, mas com quem nunca me encontrei. Acho que a nossa situação, que deveria tornar a conversa fácil, às vezes, faz o oposto. Dificulta o encontro. Torna-o realmente impossível.