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'Grávida de 3 meses sofri acidente que deixou 80% do meu corpo queimado'

"Vivia a melhor fase da vida e, em segundos, tudo acabou por conta do fogo" - arquivo pessoal
'Vivia a melhor fase da vida e, em segundos, tudo acabou por conta do fogo' Imagem: arquivo pessoal

Maria Eduarda Vieira em depoimento para Glau Gasparetto

Colaboração para Universa, em São Paulo

04/10/2022 04h00

O dia 22 de agosto de 2021 tinha tudo para ser perfeito para Maria Eduarda de Oliveira Vieira. Acompanhada pelo marido Lucas Borges Retamero, dos sogros Audrey e Leandro e do cunhado Lorenzo, Duda visitava Embu das Artes pela primeira vez. O município na região metropolitana de São Paulo é conhecido por sua tradicional feira de artesanato que atrai muitos visitantes nos fins de semana.

Era domingo de sol e os cinco resolveram almoçar em um restaurante ao ar livre. Depois de se servir no buffet, Duda esperava Lucas terminar seu prato para retornarem à mesa quando tudo se transformou em pesadelo. Um garçom foi reabastecer o réchaud da mesa com álcool gel. O fogo imediato atingiu um vasilhame de álcool por perto e provocou uma explosão. Duda, à época com 21 anos, e Lucas, com 23 anos, foram atingidos - além de uma criança e o próprio garçom, sem grandes ferimentos. O caso da jovem era o mais grave: além de ter 80% do corpo queimado, estava grávida de quase três meses.

Depois de quatro meses numa UTI e diversas cirurgias, desde então Maria Eduarda tenta retomar sua vida, como ela compartilha em seu perfil do Instagram seu processo de recuperação. A seguir, ela conta sua história.

"Veio a explosão e só senti o calor no meu corpo"

"Estava vivendo um momento em que tinha tudo o que sempre sonhei: minha casa, meu marido, meu neném, minha faculdade, meu trabalho. Naquele dia, perdi meu bem mais precioso e até hoje não aceito que isso tenha acontecido por uma irresponsabilidade do restaurante no qual almocávamos.

Eu e o Lucas tínhamos acabado de mudar para morarmos juntos. Fomos até Embu com a família dele nos distrairmos e aproveitarmos um pouco, depois de tanto tempo sem fazer isso, pela pandemia.

Queria poder dizer que não lembro de nada, mas o que mais me dói é justamente lembrar de como tudo aconteceu. No momento do explosão, passou um filme na minha cabeça. Por um momento, achei que estava sonhando. Queria acordar, mas não acordava.

Segundos antes, quando terminei de me servir, esperei o Lucas para voltarmos à mesa e fiquei olhando de lado, vendo o restaurante, que era bem bonito. Aí veio a explosão e só senti o calor no meu corpo. Olhei para o chão e pude ver o fogo tomando conta de mim. Já não tinha mais voz, pois inalei muita fumaça.

Corri para o lado oposto do Lucas e o via em chamas. Eu não podia fazer nada porque me doía tudo. Fui correndo para o lado das pessoas, que ficaram muito assustadas, mas me ajudaram, jogando balde com gelo que estava na mesa delas, só que isso não adiantou.

Duda e o marido, Lucas: ele enxerga só 20% com o olho esquerdo e ainda tem lesões na córnea.  - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Duda e o marido, Lucas: ele enxerga só 20% com o olho esquerdo e ainda tem lesões na córnea.
Imagem: arquivo pessoal

Apenas depois que o padastro do Lucas apagou o fogo nele é que veio correndo em minha direção, tirando a camisa e apagando o fogo. Lucas não sabia que eu tinha sido atingida. Só quando começou a escutar a mãe gritando: 'Minha nora está grávida. Ajudem ela' é que percebeu que fui atingida também.

"Queria tanto apagar da minha memória"

Quando os bombeiros chegaram, foi a hora em que comecei a sentir muita dor, pois o fogo tinha sido apagado. E era uma dor imensurável.

Se quando nós queimamos a mão no fogão já dói tanto, eu ali, com 80% do corpo queimado, sentia que era pior que filme de terror!

Me colocaram na ambulância principal, pois estava em estado mais grave e grávida. Sentia dor no meu corpo inteiro e fiquei olhando minha pele caindo - queria tanto apagar isso da minha memória?

Começaram a jogar soro no meu corpo e a rasgar meu vestido. Queimei muito minhas costas e ficar ali deitada, com a ambulância mexendo, eu só queria ser dopada para não sentir a dor. Fomos levados para o Hospital de Pirajussara, em Taboão da Serra.

No corredor do pronto-socorro, ouvi a bombeira dizendo: 'Não deveríamos ter trazido eles para cá. Vão morrer, pois aqui não tem vaga'. Logo me colocaram nunca sala. O Lucas ficou no meu lado esquerdo e eu o escutava chorando e gritando de dor - lembro como se fosse ontem. Aí pegaram minha veia e dormi.

Na madrugada, fomos transferidos para outros hospitais, em São Paulo: Lucas foi para o Hospital da Luz e eu, para o Hospital 9 de Julho.

Foram quatro meses internada. O médico responsável chegou a conversar com a minha mãe, avisando para ela se preparar para o pior, porque eu estava entre a vida e a morte.

Realizei 20 cirurgias nesse tempo: cirurgia de enxerto de pele, desbridamentos e curativos em várias partes do corpo e todos com muito sofrimento. Não sei ao certo quantas cirurgias ainda faltam.

Em outubro, vou operar meu dedinho, que está em botoeira. Outros dois estão ficando atrofiados. Passarei por uma cirurgia no tendão para tentar recuperá-lo, pois ainda sinto muitas dores.

"Perder o bebê foi a pior dor"

Fiquei na UTI quase o tempo todo da minha internação. Quando eu comecei a acordar do coma, mordi a cânula de intubação. Às pressas, fizeram uma traqueostomia, pois minhas cordas vocais foram afetadas, mas também tive problema ao usar o traqueo.

Tentava falar e não conseguia. Fui diagnosticada com estenose, que é quando ocorre o fechamento da região interna da traqueia, impedindo a saída do ar. Tive que fazer duas broncoscopia. Minha voz mudou e hoje é rouca.

No começo, havia uma tabela com o alfabeto. Precisava apontar as letras para alguém soletrar o que queria dizer. Muitas vezes as pessoas não entendiam, eu cansava de fazer tanto movimento e preferia não dizer nada.

E eu não entendia muito bem porque estava ali por tanto tempo. Depois fui conversando com os médicos e aceitando. Só fui para a semiUTI uma semana antes da minha alta.

Soube sobre meu neném uns 20 dias depois. Não conseguir falar, nem me mexer. Tive que fazer muito esforço para colocar meu braço direito em cima do meu corpo. A equipe da enfermagem achava que eu estava com dor na barriga.

Quando consegui levantar o braço e fazer o movimento, mostrando uma barriga grávida, chamaram minha mãe para estar junto e me comunicarem sobre minha perda.

Saber que perdi meu bebê foi o momento mais difícil da minha vida. Fiquei sem chão e não queria mais seguir em frente sem meu filho. Entrei em depressão ainda no hospital.

Depois que soube da minha perda, queria muito ter notícias do Lucas. Mas como não conseguia falar, fui saber dele muito tempo depois, mais ou menos com dois meses de internação.

Hoje, Lucas se encontra bem, mas sua visão foi atingida. Ele enxerga só 20% com o olho esquerdo e ainda tem lesões na córnea. Precisará fazer, inicialmente, um transplante.

"Pedia a Deus para me levar"

Tinha um pouco de noção sobre meu estado. Quando subiram minha cama na UTI, vi meu reflexo no vidro. Mas foi no espelho do elevador, descendo para o centro cirúrgico, que me vi realmente. Ali, meu mundo desabou.

Chorei por muito tempo e pedi para Deus me levar de novo, porque eu não queria ficar daquele jeito. Achava que eu não iria me aceitar, nem ninguém mais me aceitaria, também.

Tem dias que fico vendo as fotos do meu relatório e não consigo aceitar. Vivia a melhor fase da minha vida, com meu corpo, com meu rosto e, em questão de segundos, tudo acabou por conta do fogo. Fiquei totalmente diferente do que eu era.

Minha autoestima é o meu desafio de todos os dias. Me olhar no espelho e lembrar de como era e ver como fiquei me torna frágil demais. Choro sempre. Evito sair de dia, por causa do sol (que não posso tomar) e pelos olhares. Prefiro a noite, que dá para 'esconder' e evitar olhares.

Demorou quase um ano para eu poder me maquiar de novo, só que hoje não é mais a mesma coisa. Me maquiava para me sentir linda, mas não me sinto mais assim. É difícil encontrar roupas que deem certo com a malha compressiva e confesso que evito ir em lojas, porque as vendedoras geralmente não me dão atenção.

"Cicatrizes são vitórias"

Até hoje tenho dificuldade em me amar, mas a queimadura, com um tempo, vai mudando e estou vendo um pouco de melhora. Hoje sei que minhas cicatrizes são marcas de vitórias e não me vejo mais sem elas, por tudo que precisei passar e todas as dores que tive que sentir.

'Hoje sei que minhas cicatrizes são marcas de vitórias e não me vejo mais sem elas", diz Duda - arquivo pessoal - arquivo pessoal
'Hoje sei que minhas cicatrizes são marcas de vitórias e não me vejo mais sem elas", diz Duda
Imagem: arquivo pessoal

O lado esquerdo do meu corpo inteiro é todo queimado. Minha perna esquerda é só enxerto. Apenas a parte da frente da perna direita e um pouco do meu antebraço direito não foram totalmente afetados.

Tomar banho, no começo, era um pesadelo porque eu sentia tanta dor. Hoje, felizmente, não sinto mais. No início, também dependia dos outros para fazer tudo. Hoje, só para fazer comida. Já tentei, mas o calor do fogo me lembra muito o que aconteceu, então não consigo. De resto, faço tudo sozinha.

A parte mais chata do meu tratamento, atualmente, é a malha compreensiva no meu dia a dia. Ela aperta demais e passo muito tempo vestindo-a, mas tenho que usar o tempo todo, até para dormir.

"As pessoas querem pessoas perfeitas"

Sou assistente fiscal, mas estou afastada do trabalho pelo INSS. Terminei a faculdade de Administração e, atualmente, tenho frequentado academia e faço acompanhamento de nutricionista para recuperar minha musculatura e a gordura do meu corpo.

Sair de casa é desafio muito grande, pois tenho que enfrentar os olhares das pessoas. Os outros julgam muito pelos olhares e isso me deixa sem reação. Demorei uns seis, sete meses para sair em público e foi uma experiência muito ruim.

Todo mundo ficava me olhando. Pensei muitas vezes em chorar e em ir embora, mas minha família segurou minha mão e não me deixou desistir.

O pior é que a maioria desses olhares vinha de mulheres. Como se consegue viver em uma sociedade assim? Se te julgam por ser magra, por ser gorda, por ser bonita, feia, imagina então ser uma pessoa queimada, cheia de cicatrizes?

Meu sonho era ser modelo e agora meu sonho acabou, porque as pessoas querem pessoas perfeitas. Tinha meu cabelão, meu corpo sem cicatrizes e hoje trabalho com a aceitação todos os dias. Eu amava tirar foto e já nem gosto mais tanto quanto antes.

Cheguei a ir em uma agência de modelo e foi um grande desafio, porque todo mundo me olhava, possivelmente se perguntando: 'Por que essa menina com essas marcas está aqui?'

Quando cheguei em casa, chorei demais porque tirei as fotos e vi que as pessoas tiraram só por tirar. Tanto que nunca me chamaram para fazer nenhum trabalho. A sociedade é muito injusta e não tem espaço para pessoas queimadas; só para pessoas perfeitas.

Mas eu sou perfeita por tudo que passei e por todas as minhas cicatrizes. Sou um milagre. Também sonhava em ser influencer e hoje o meu maior sonho é ser reconhecida pela minha história de superação e determinação.

Quero mostrar minha história e que existem outras pessoas que se escondem por não serem aceitas. E quero ser aceita em todo lugar que for e que todos aceitem minha cicatrizes." Maria Eduarda de Oliveira Vieira, 22 anos, assistente fiscal, de São Paulo