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Com câncer, vítima que caçou Abdelmassih diz: 'Prisão dele é meu legado'

Vana Lopes fala sobre o câncer que enfrenta há dois anos - Arquivo pessoal
Vana Lopes fala sobre o câncer que enfrenta há dois anos Imagem: Arquivo pessoal

De Universa, em São Paulo

27/08/2022 04h00

Em 1993, enquanto fazia uma fertilização in vitro na tentativa de engravidar, a estilista Vana Lopes, 62 anos, foi estuprada pelo ex-médico Roger Abdelmassih dentro de seu consultório. Ela só pode respirar um pouco mais aliviada ao ver seu algoz capturado e preso em 2014, depois de três anos foragido no Paraguai: ela passou anos mergulhada em frente a um computador procurando pistas sobre seu paradeiro. E não desistiu até ajudar a polícia a encontrá-lo.

Hoje com câncer em estágio avançado e uma expectativa de vida de seis meses, ela diz que vai se despedir da vida sabendo que o homem pagou pelo que fez. "Ele é o que é: um nada."

Um dos médicos mais famosos em fertilidade e inseminação do país, Abdelmassih, 79, foi indiciado em junho de 2009 por estupro e atentado violento ao pudor contra 39 pacientes, e condenado a 278 anos de reclusão —a sentença foi reduzida a 173 anos. Ele ficou preso por quatro meses, mas saiu em dezembro daquele mesmo ano sob habeas corpus, para recorrer em liberdade.

Em maio de 2011, o ex-médico teve seu registro cassado pelo Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) e logo depois fugiu junto a sua mulher, a ex-procuradora Larissa Sacco, e os filhos gêmeos. Ele passou a ser um dos criminosos mais procurados pela polícia de São Paulo. A recompensa por informações sobre seu paradeiro era de R$ 10 mil.

Mineira de Diamantina, a estilista se casou pela primeira vez em 1986, e sem conseguir engravidar procurou médicos renomados como Milton Nakamura, responsável pelo primeiro bebê de proveta brasileiro, para realizar o sonho de ser mãe. Foi quando chegou a Roger Abdelmassih, conhecido como Doutor Vida, em 1993.

Na terceira tentativa de inseminação artificial, Vana acordou no meio do procedimento com Abdelmassih ejaculando sobre seu corpo. Dessa violência, além do trauma, contraiu peritonite aguda, uma infecção generalizada que a fez perder as trompas e parte de um ovário. Separou-se do marido, tentou suicídio. E até hoje não sabe o que foi feito dos seus dez embriões que permaneceram na clínica.

O ex-médico Roger Abdelmassih foi preso em 2014 -  Ernesto Rodrigues/Folhapress/COTIDIANO -  Ernesto Rodrigues/Folhapress/COTIDIANO
O ex-médico Roger Abdelmassih foi preso em 2014
Imagem: Ernesto Rodrigues/Folhapress/COTIDIANO

Inconformada com a fuga de Abdelmassih, Vana criou a página "Vítimas Unidas", mesmo nome de sua ONG que ajuda vítimas de diversas violências, e começou a receber informações sobre o seu paradeiro, assim como contatos de outras vítimas de Roger. Com sua ajuda, a Polícia Federal o prendeu em 2014, no Paraguai. Ele cumpre sua pena no presídio de Tremembé (SP).

Vana vive em Portugal com o marido, o português Jorge Duarte, com quem está há oito anos. Tem uma filha adotiva, Leda, 38, uma neta, 18, e uma bisneta, de 6 meses. Há dois anos lutando contra um câncer de mama, descobriu que a doença se espalhou e tem expectativa de seis meses de vida. Para amenizar as dores nos ossos, ela vive sob os efeitos de morfina e ópio.

A seguir, veja seu relato.

"Estava tratando o câncer de mama há dois anos achando que seria curada. E comecei a sentir uma dor na perna e na costela, achando que era de nervoso, psicológico. Mas os exames apontaram metástase nos ossos, na coxa, na perna direita, costela, joelho, ancas. Sinto dores inenarráveis.

Tomei morfina injetável por um tempo, mas agora tenho ela em forma de adesivo (que deve ser aplicado na pele e mantido por sete dias). Também tomo ópio. Tudo para a dor.

Parei a quimioterapia que vinha fazendo há dois anos porque meu caso agora não tem cura. Tenho uma expectativa de vida de seis meses, mas dizem que tem casos em que a pessoa chega a três anos. O meu é muito invasivo. Foi difícil contar para minha irmã, minha filha. Todo mundo chorava.

"O que não pode partir é a ânsia por justiça"

Mas eu não estou com câncer na cabeça nem na língua. E tenho uma missão ainda. Muita gente depende de mim.

Eu passei a marca Vítimas Unidas para a Maria do Carmo, que é presidente do grupo. Ainda estou esperando o resultado da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), que ano passado decidiu julgar o Brasil por omissões praticadas no caso Abdelmassih, incluindo o sumiço de embriões, óvulos e sêmen de pacientes. E estou elaborando com vários juristas um projeto de lei para prevenir violência.

Aprendi muita coisa nesses anos de luta, mas quando você vai se aproximando da morte, enxerga tudo diferente. Eu tenho tentado ajudar pessoas quando perdem entes queridos, e agora chegou a minha vez. Mas uma hora tinha que morrer. O que não pode partir é a ânsia por justiça.

No dia da prisão de Roger Abdelmassih, Vana Lopes foi ao aeroporto de Congonhas com seu exame de corpo delito - Eduardo Knapp/Folhapress. COTIDIANO - Eduardo Knapp/Folhapress. COTIDIANO
No dia da prisão de Roger Abdelmassih, Vana Lopes foi ao aeroporto de Congonhas com seu exame de corpo delito
Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress. COTIDIANO

E acredito que o Roger tenha pagado pelo que fez, porque virou pó. Quem é ele hoje? Ele é a referência do que é de ruim no Brasil. Ele é o que é: um nada. Às vezes, vejo documentário sobre homens como Hitler e fico pensando que, para o resto do mundo, eles sempre serão monstros. É sobre isso.

Me disseram que quem tinha que morrer primeiro era ele, para eu ter o gosto de jogar terra no seu caixão. Mas você conhece o além? Quem vai poder dizer que está saindo em vantagem nessa história?

Eu não acho injusto partir primeiro, porque iria de qualquer maneira um dia. Todos vão, é só uma questão de tempo. Eu estou indo num tempo diferente.

Não dá para responder se eu o perdoei. Esses dias, li que quem perdoa é Deus, eu tiro print.Mas sei que não sou nenhuma santa. Fui criticada e perseguida também por causa da minha luta, da minha dedicação às vítimas. Nada acaba mais com a humanidade do que a vaidade.

Uma das vítimas do Roger, por exemplo, queria aparecer mais do que eu. Ganhei alguns prêmios pelo que fiz, não só por ter denunciado, mas caçado o Roger, e ela me pediu para dizer que também caçou, que fez alguma coisa, que bateu de porta em porta para descobrir onde ele estava.

Eu não fiz nada demais, apenas não me conformava com o fato de o homem ter ido à lua enquanto a polícia não encontrava ele com duas crianças gêmeas e uma mulher. Então, peguei o computador e passei anos procurando por pistas.

"Fui violentada, mas voltei a amar"

Esse é o meu legado. Porque não foi brincadeira. Foram 30 anos de dedicação às vítimas, porque depois passei a ser procurada. E não é fácil ouvir tragédias. Não sou psicóloga, mas alguém com quem as pessoas se identificam porque fui vítima, e sofro escutando aquilo tudo. E não ganhei nada por isso. É o mínimo que eu posso fazer.

Mas tenho minha vida também, minha família. Não tive geneticamente um herdeiro, mas tenho uma do ventre da minha alma, que é a minha filha. A minha história de vida está perpetuada no amor, na memória dela. E ela está vindo para Portugal com a minha neta. Ela disse que quer segurar minha mão até o último dia.

Vivi amarguras, mas não me tornei uma pessoa amarga. E isso é bom para continuar com otimismo. A minha cicatriz está aqui. Sei que fui violentada, mas voltei a amar. O amor vence. E o meu está aqui ao meu lado.

Ele me salvou porque fiquei assexuada, com medo de sexo. Perdi a autoestima e o Jorge resgatou isso. A psicóloga com quem me consultava disse que eu não poderia ficar com aversão a homem, e me incentivou a entrar em um aplicativo de relacionamento.

Eu o conheci há oito anos, pela internet. Nem queria mais homem na minha vida, e como o Jorge estava do outro lado do oceano, pensei que não ia encontrá-lo. Mas aí ele me mandava música romântica e resgatou em mim um sentimento.Comecei a perceber que eu estava me arrumando para falar com ele pela internet. E depois de um ano tivemos nossa primeira relação.

Fiz questão de casar em Portugal e colocar o sobrenome dele, porque ele entrou na minha vida e queria ser a senhora Duarte. Ele sabe de toda minha luta, da minha dedicação às vítimas, mas estabelecemos horários para ficarmos a sós, assistir a um filme, jantar, fazer as nossas coisas.

Ele tem uma doença raríssima, que é espondilite anquilosante [inflamação das articulações], e é aposentado por invalidez.

Hoje quem cuida de mim é ele, meu doutor amor. Esses dias mesmo eu gritei de dor porque passaram alguns minutos da hora de colocar o adesivo. Parecia que eu estava levando facadas pelo corpo. E eu estou de muleta, sem poder andar. Ele estava no supermercado e veio no desespero para trocar.

"Não tenho medo da morte, tenho medo das dores"

Vou fazer uma festa, um sunset agora em outubro no Brasil. Minhas amigas queriam vir para Portugal, mas juntaram dinheiro para comprar minha passagem.

Não será uma festa de despedida, mas um reencontro, para a gente marcar de se ver em outro planeta. Quem estiver lá vai saber a senha. Depois eu volto para Portugal e vai ser muito difícil a gente se ver de novo.

Mas não tenho medo da morte. Tenho medo das dores, porque o momento da passagem, em qualquer situação, é sinônimo real da palavra susto."