Catadora mostra rotina nas redes: 'Sei tudo da vida das pessoas pelo lixo'
Todos os dias, há 12 anos, Litz Gouvea sai de casa cedo, com dezenas de sacos de lixo, e passa o dia fazendo coleta em um conjunto residencial na zona norte de São Paulo. Mas, há menos de um ano, a catadora de 28 anos, que também faz curso técnico de meio ambiente, passou a compartilhar nas redes sociais sua rotina trabalhando com o lixo.
No perfil do Instagram, que ganhou o nome de Barbie Lixeira, Litz coloca os seguidores frente a frente com o lixo que produzimos e discute tanto questões ambientais, como excesso de resíduos e reciclagem, como questões sociais, como racismo e violência policial contra catadores.
Em entrevista a Universa, ela conta que este "é um trabalho árduo, pesado, mas que fica mais difícil por causa da falta de respeito das pessoas com a separação dos resíduos".
O lixo é um assunto coletivo, mas a gente não é educado sobre isso desde criança. As pessoas pensam: 'Jogo fora, tiro da minha casa e o problema não é mais meu'. Aí cabe a nós, garis e catadores, lidar com o que as pessoas não querem mais.
"As pessoas enxergam as lixeiras separadas por cor mas a ignoram, jogam na lata errada ou até no chão, na frente. É muito descaso. Eu gravo, mostro o problema, principalmente a questão de vidro, que é um fator de risco para os catadores", explica.
Assédio e violência policial: "Quiseram me bater"
"Hoje a gente tem um local específico [o conjunto residencial onde Litz e o pai fazem a coleta], mas, por já ter trabalhado na rua, a gente percebe o descaso com os catadores", fala.
Ela relembra situações de assédio sexual e de violência policial, como agressões recorrentes na rotina.
"Já fui parada pela polícia. Tive que me impor, não deixar tocar em mim, porque não tinha policial mulher, e os policiais quiseram me bater. Sou uma mulher preta, toda tatuada, e não saio para trabalhar com a mesma roupa que vou para a balada. Alguém me vê mexendo no lixo, pensa sei lá o quê e chama a viatura."
É preconceito, racismo. O catador tem esse estigma de ser morador de rua, drogado, vagabundo. Mas a gente não pode normalizar essa violência. O catador está trabalhando como qualquer outra pessoa.
Litz conta que, na rua, as mulheres ficam ainda mais sujeitas a assédio. E, como em outras profissões, a desigualdade de gênero é escancarada. "Muitas vezes, as pessoas preferem pedir qualquer serviço de catador para homens com o argumento da força física, principalmente na retirada de entulhos e eletrodomésticos".
"Antigamente, quando comecei, era bem difícil ver mulheres catadoras trabalhando sozinhas, elas saíam em casal ou em família, como meu pai e eu", lembra. "Agora, principalmente depois da pandemia, com a alta do desemprego, vejo muitas mulheres sozinhas, mães solo, às vezes com crianças."
"Dá para saber tudo da vida de alguém pelo lixo"
Litz começou a trabalhar como catadora aos 16 anos, quando sua mãe ficou doente e ela decidiu trabalhar para ajudar na renda da família —mas, como seu pai não queria que ela parasse de estudar, a solução encontrada foi que os dois saíssem para fazer coleta de recicláveis no contraturno da escola.
"Fui percebendo como as pessoas jogam a vida delas no lixo. Dá para saber tudo da vida das pessoas pelo lixo delas. Na coleta, a gente consegue ver todos os hábitos alimentares, se a pessoa é saudável ou não, os remédios que ela toma, o que consome."
Litz conta que, quando começou a trabalhar como catadora, passou a se interessar cada vez mais por questões ambientais —nasceu aí o interesse em estudar meio ambiente. Hoje, ela tem um coletivo de reciclagem chamado Recicle Ou Morra e é ativista na proteção dos animais.
"As pessoas veem o tema ambiental só como árvore, natureza, uma coisa distante da cidade, mas meio ambiente é tudo: nossa casa, a rua, o local de trabalho. Elas olham para o entorno, para os animais, como se estivessem ali para servir. Não têm senso de responsabilidade com o ambiente porque sabem que sempre vai ter alguém para limpar, para resolver, e não entendem que isso se torna um problema."
O nome da conta no Instagram, @barbielixeira, foi inspirado em uma música da banda Os Pedrero e surgiu a partir de comentários de amigos: "Eles falavam que eu era muito bonita para trabalhar com lixo. Aí pensei: a Barbie tem todas as profissões, mas nunca vi uma catadora. Agora vai ter até um filme dela, então tem que ter uma catadora", explica.
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