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Congresso brasileiro nunca aprovou lei voltada à população LGBT; por quê?

Congresso recebe as cores da bandeira LGBTQIA+, em 2021 - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Congresso recebe as cores da bandeira LGBTQIA+, em 2021 Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

27/06/2022 04h00

Criar um programa contra homofobia nas escolas, estabelecer notificação compulsória em casos de violência por homofobia e incluir no Código Penal punição específica para quem discriminar outra pessoa por orientação sexual —essas são apenas algumas das propostas ligadas à proteção ou garantia de direitos da população LGBTQIA+ protocoladas na Câmara dos Deputados, mas com tramitação parada há pelo menos quatro anos.

São projetos de lei não fogem à regra, afinal, o Congresso Nacional nunca aprovou uma lei sequer ligada a questões LGBTQIA+. Há várias sugeridas, mas nenhuma dela, até hoje, avançou.

Conquistas recentes como a criminalização da homofobia e da transfobia, em 2019, e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2013, não partiram do Congresso e, tecnicamente, não são leis, mas são reconhecimentos do Supremo Tribunal Federal que acabam atuando com cobertura legal. Segundo especialistas ouvidos por Universa, esse tem sido o caminho encontrado por ativistas e operadores do direito, já que o Congresso permanece em silêncio em relação à temática LGBTQIA+.

Projetos passam anos parados

É difícil precisar o número de propostas ligadas aos direitos LGBTQIA+ que tramitam no Congresso, mas, na busca da Câmara dos Deputados pelos termos "LGBTQIA+" e "transexuais", por exemplo, aparecem, para cada um deles, cerca de 70 projetos de lei protocolados desde a década de 1980.

"Ocorre que a maioria dessas ideias é apresentada mas não passa nem das primeiras fases de tramitação. Há muito pouco apoio dos parlamentares para que essas propostas avancem", fala Gustavo Gomes da Costa, doutor em Ciência Política pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do artigo "Movimento LGBT e Partidos Políticos no Brasil", parte da revista de sociologia "Contemporânea", publicada pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos).

O advogado Paulo Iotti, especialista em Direitos Humanos e questões LGBTQIA+, afirma que a dificuldade é histórica. "O Congresso sempre se mostrou institucionalmente homotransfóbico, nunca aprovando nada em favor da nossa comunidade. Estamos lá, pedindo, mas nunca tivemos apoio. Só posso concluir que é preconceito", diz.

Supremo se tornou único caminho viável

Há pouco mais de uma década, diante da inércia do Poder Legislativo, a comunidade LGBTQIA+ encontrou "abrigo" no Poder Judiciário, responsável por todos os avanços de direitos dos últimos anos: união estável, casamento, doação de sangue por homens gays, criminalização da homofobia, entre outros.

Essa estratégia de recorrer ao Judiciário para a garantia de direitos começou com as ações que geraram o reconhecimento da união homoafetiva pelo STF, em 2011 —decisão fundamental porque, além de permitir que casais de pessoas do mesmo sexo formalizassem a união, também passou a reconhecer esses casais como família.

"A decisão favorável era esperada, mas, sendo por unanimidade, o tribunal rechaçou toda forma de discriminação por orientação sexual. Isso deixou o movimento LGBTQIA+ animado e nos mostrou que o STF é um caminho viável para avançarmos", fala o advogado Paulo Iotti, que é autor da ação que levou o STF a decidir por criminalizar a homofobia e a transfobia, em 2019 —também por inação do Congresso em relação a este tema.

A professora Lígia Fabris, da Faculdade de Direito da FGV-Rio (Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro) lembra que, na verdade, ao resguardar os direitos da população LGBTQIA+, o Supremo está cumprindo sua função mais básica.

"Em uma democracia, os direitos das minorias não podem ficar à mercê da vontade da maioria. Por isso, cabe ao STF exercer esse papel contramajoritário de garantir direitos fundamentais para minorias, sejam elas numéricas ou políticas, desde que à luz da Constituição".

Movimentação durante julgamento sobre se homofobia deve virar crime, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) - FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO - FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Movimentação durante julgamento sobre se homofobia deve virar crime, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)
Imagem: FÁTIMA MEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Fundamentalismo religioso contribui para inércia

O principal fator apontado pelos especialistas ouvidos por Universa para explicar a inércia do Congresso é o conservadorismo dos deputados e senadores, especialmente quando aliados à religião.

A reivindicação pelos direitos LGBTQIA+ começou a ganhar força na década de 1980, mesmo período de formação do que hoje conhecemos como bancada evangélica, explica o pesquisador Gustavo Gomes da Costa —esse, portanto, é um embate de quase quatro décadas.

"A Bancada Evangélica logo se torna a porta-voz de um discurso conservador, de base religiosa, e que vai se opor claramente contra direitos LGBTQIA+, mas também contra o aborto legal e outras pautas que entendem como sendo 'contra a moral e os bons costumes'", diz Costa.

As eleições de 2014 e 2018, no entanto, só intensificaram essa disputa porque formaram a atual legislatura, que ele chama de "uma das mais conservadoras da história do país". "É um grupo relativamente pequeno, mas que é capaz de fazer bastante barulho, o que explica por que esses projetos não conseguem avançar no Congresso Nacional".

Mas, além da atuação da bancada evangélica, que é uma minoria que trabalha abertamente contra essas temáticas, há uma maioria silenciosa, percebe o pesquisador, que prefere não agir contra nem a favor da comunidade LGBTQIA+.

"Casamento entre pessoas do mesmo sexo e educação sexual nas escolas, por exemplo, são temas vistos por uma fatia considerável do eleitorado como polêmicos", fala. "Muitos parlamentares se abstêm de discutir essas propostas por medo que isso tenha impacto negativo em seus desempenhos eleitorais, então eles não querem se posicionar a respeito porque isso tem custo político muito alto".

A professora Ligia Fabris, no entanto, pondera que o Brasil tem tendências conservadoras que vêm da própria população. "Não adianta culpar apenas quem está na política porque eles estão respondendo a um conjunto de eleitores que deu aos eleitos esse poder de agir ou não".

Mudança virá com parlamento mais diverso

Neste ano, Brasil tem chances de aumentar o número de parlamentares LGBTQIA+ no Congresso e eleger pela primeira vez uma mulher trans como deputada federal.

"A eleição de pessoas LGBTQIA+ é uma resposta à inércia do Congresso. Não dá mais para depender do apoio dos simpatizantes, é importante que a gente se faça representar pelos nossos representantes", acredita Gustavo Gomes da Costa.

Paulo Iotti concorda, mas pondera que, se eleitas, vão enfrentar muitos desafios, a começar pela falta de apoio. Ele lembra o que aconteceu com parlamentares como Jean Wyllys, que foi vítima de homofobia dezenas de vezes durante seu mandato, a ponto de renunciar do cargo. Nas palavras de Iotti, ele "acabou escanteado no Congresso". E o temor é que isso se repita.