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Aliciadora ou vítima? Quem é Ana Banana, ex-braço direito de Saul Klein

Pedro Lopes e Camila Brandalise

De Universa, em São Paulo

26/03/2022 04h00

Depois de pouco mais de uma hora de viagem desde Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo, a equipe do UOL faz a curva em uma estrada de terra na extrema zona sul de São Paulo. No final dela, em uma paisagem cada vez menos urbana e mais rural, chega a uma casa grande, rústica, com cara de chácara. Enquanto o motorista da van com os equipamentos de filmagem sofre para alinhá-la ao portão, Ana Paula aparece para receber a reportagem com um sorriso cauteloso. Era horário de almoço.

"Avisei que tinha muitos bichos quando marcamos a entrevista", disse a anfitriã. Em seu colo, um pequeno cachorro. Seguindo seus passos, vinha outro, maior, bastante descontente com a presença de estranhos. Ao fundo, uma pequena sinfonia de latidos indicava a presença de outros cães. Dentro da casa habitavam gatos e outros animais. "Minha vocação é cuidar", disse ela.

Ana Paula Fogo tem 34 anos e é uma das personagens centrais do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso", de Universa e Mov.doc, que estreia no dia 29 de março. Durante mais de uma década, nas palavras dela própria, "cuidou" de um esquema que envolveu centenas de garotas frequentando as mansões do empresário, filho de Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, que morreu em 2014. Era responsável por aliciá-las, recebê-las nas casas de Saul, organizar as festas e a rotina do empresário com as mulheres contratadas.

Ana Paula Fogo, a Ana Banana, ex-braço direito de Saul Klein - Reprodução - Reprodução
Ana Paula Fogo, a Ana Banana: ela seria uma das aliciadoras do esquema de Klein, mas afirma ter sido, também, uma das vítimas do empresário
Imagem: Reprodução

Hoje, Saul Klein é acusado de estupro e investigado por diversos crimes, como lesão corporal e cárcere privado, em um processo envolvendo 14 vítimas. É acusado também de manter, durante pelo menos 15 anos, uma rede de aliciamento e recrutamento de jovens para eventos em suas propriedades.

"Ele dizia confiar apenas em mim. Eu tinha o compromisso de estar presente 24 horas na vida dele. Virei confidente, então era só comigo que ele falava de todas as suas intimidades. Por isso que, inclusive, digo que a única pessoa que pode questioná-lo sou eu", diz Ana na série.

Conhecida como Banana pelas mulheres que denunciaram Klein ao Ministério Público em setembro de 2020, Ana ocupa uma posição dúbia no mundo insólito de Klein. Em sua fala, se considera uma vítima, uma mulher jovem e idealista recrutada e cultivada para se tornar braço direito de um homem poderoso.

Para as meninas, foi peça fundamental nas práticas criminosas, coordenando desde o aliciamento até o dia a dia de um esquema que deixou marcas devastadoras na vida de dezenas delas —distúrbios alimentares, infecções sexualmente transmissíveis, transtornos psiquiátricos e suicídio.

Uma "Maria do Bairro" apaixonada

Filha de nordestinos, Ana teve criação católica. Ainda assim, guarda em uma estante da sua casa a menorá, tradicional candelabro judaico de sete velas. No punho, carrega a tatuagem de uma estrela de Davi com a letra "S" dentro. "S" de Saul Klein, judeu, de uma família que chegou ao Brasil deixando para trás o holocausto. São símbolos da devoção que Ana manteve pelo empresário, com quem trabalhou entre 2007 e 2018. Mais do que funcionária, foi cuidadora, companheira e executora de ordens e vontades.

Ela conta ter sido recrutada por uma intermediária em uma casa noturna, para manter relações sexuais com o empresário. "Tudo foi acontecendo como um turbilhão de emoções, e eu não consegui reagir. Olhei e eu já estava pelada com ele na cama. Eu realmente acreditei que (...) estávamos apaixonados. E eu sou sim uma Maria do Bairro que acreditou ter encontrado um príncipe encantado."

Ana tinha 18 anos.

Mais tarde, em uma das festas promovidas por Klein, foi a única a manter-se sóbria e a cuidar das outras 'convidadas'. A partir desse momento, foi 'promovida' - ele pediu que ela deixasse de trabalhar, para tornar-se uma assistente na organização de sua rotina.

"Ele mudou a minha vida. Mudei o cabelo, meu jeito de agir, os filmes a que eu assistia, comecei a me tornar mais culta, entrei na faculdade. Fiz de tudo pra agradar ele, tudo que você possa imaginar."

Era quem organizava os eventos, dizia às garotas o que vestir e como se comportar. Participava ativamente do processo de recrutamento, que, na maioria das vezes, envolvia falsas promessas de empregos tradicionais. Monitorava as mulheres nos períodos que passavam fora das propriedades de Klein. Mais que organizar encontros e festejos, a principal atribuição de Ana Paula era, na verdade, normalizar o circo de horrores montado nas propriedades do empresário. Ela passou a reproduzir com as novatas as mesmas situações por que ela havia passado.

"Aceito o ódio de muitas meninas, porque eu executava 100% do que ele [Klein] pedia para eu fazer. Ele falava que alguém tinha que morder, e ele ia soprar", conta. "Quando ele tinha uma relação com uma menina e a machucava, eu era a mulher que ia até o banheiro e ouvia. Ele mandava eu passar uma pomada anestésica. Fazia realmente tudo o que ele pedia, porque daquela forma eu era aceita."

Em algumas pausas para novas tomadas ou trocas de cartão de armazenamento da câmera, ela engole alguns comprimidos, sem dizer o que são, sempre com goles de uma lata de energético. Durante esses momentos, continua contando suas experiências durante os anos ao lado de Klein, mesmo com o equipamento desligado.

Nos depoimentos exclusivos dados ao documentário "Saul Klein e o Império do Abuso", mulheres que acusam o empresário brasileiro descrevem com contornos parecidos a atuação de Ana Paula Fogo. "Uma época, consegui sair de lá. Fiz tratamento psiquiátrico, estava muito mal, paranoica, cheguei a ser diagnosticada equivocadamente como esquizofrênica. Aos poucos, comecei a melhorar. Na primeira vez em que eu saí com minhas amigas, postei uma foto. A Ana Paula viu, me disse que eu estava muito linda e que ele sentia saudades de mim. Me pediu para voltar", conta Juliana*, uma das vítimas que processam Klein.

"[Na minha primeira vez] éramos um monte de meninas, umas 30, e todo o mundo falava da Banana, que ela era um monstro. Já estava morrendo de medo dessa tal da Banana. Quando ela chegou, pensei: 'Nossa ela é bonita, será que ela é tudo isso mesmo que falaram?'. Ela era tudo aquilo. Era pior ainda", narra outra vítima.

Investigada e denunciante

O nome de Ana Paula ou seu apelido, Banana, aparece dezenas de vezes no inquérito que investiga Saul Klein. Nas citações, ela é apontada como responsável por constranger e intimidar mulheres para que mantivessem relações sexuais com o empresário e ameaçá-las em caso de recusa.

Na mesma investigação, o nome de Ana aparece também no rol de vítimas —não entre as 14 denunciantes, mas à parte, e com advogado próprio. A mulher apontada como braço direito e capataz de Saul Klein também processa o filho do fundador das Casas Bahia. É uma ação trabalhista, cobrando indenizações e direitos pelos anos trabalhados na casa do empresário. Ela corre em segredo de Justiça.

A defesa de Saul Klein alega nas investigações que ele era um "sugar daddy", homem mais velho que mantinha relações consensuais afetivas e sexuais com mulheres mais novas. No argumento, os advogados do empresário admitem que violência pode ter ocorrido, mas, se for o caso, teria sido sem a ciência do empresário e praticada por Ana Paula e outros funcionários contratados para a organização de eventos.

Ana fala com firmeza durante a maior parte da entrevista. As mãos se mexem pouco, e só escapa um ou outro olhar para checar o comportamento dos animais espalhados pela casa. Diante das câmeras, ela parece saber de cor o caminho por um corredor interminável de memórias do período com Klein. Está determinada a assumir e a contar para mundo o que fez e viveu ao lado do empresário.

"Minha vida está presa ao Saul. Eu estava ao lado dele. Não adianta eu fugir. Vou encarar de frente. E vou tentar conseguir justiça", diz Ana Paula.

Mulheres como braço direito e escudo

A ambiguidade entre os posicionamentos como vítima e algoz também é algo que se repete em acusações que envolvem exploração sexual de mulheres a serviço de homens poderosos.

O bilionário estadunidense Jeffrey Epstein teve a seu lado a socialite inglesa Ghislaine Maxwell, ora descrita como sua namorada, ora como assistente pessoal. Epstein manteve por anos um esquema por meio do qual aliciava e estuprava mulheres e menores de idade, remuneradas para que atraíssem amigas e parentes.

Ele morreu em uma prisão em Nova York, em agosto de 2019.

Várias vítimas de Epstein apontaram a participação fundamental de Maxwell como aliciadora e organizadora do esquema. Ela foi condenada em dezembro de 2021 por tráfico sexual de menor, transporte de menor para atividades sexuais e conspiração e aguarda o anúncio de sua pena, previsto para junho deste ano. Agora, também move um processo cível contra o espólio do empresário, alegando estar afundada nas despesas com advogados.

Já o cantor R. Kelly foi condenado no ano passado por manter uma rede de exploração sexual de mulheres que incluía menores de idade. Dentre os crimes estão tráfico de pessoas, sequestro, suborno e exploração sexual de crianças. Ele mantinha dezenas de mulheres confinadas em suas propriedades. Sua ex-assistente, Diana Copeland, vem se defendendo de acusações que apareceram durante o processo, indicando que ela auxiliava no recrutamento e na organização dessas mulheres. Ela nega.

O documentário "Wild Wild Country", lançado pela Netflix em 2018, conta a história do guru indiano Bagwhan Rajneesh, conhecido como Osho, e sua assistente Ma Anand Sheela, fundadores de uma comunidade chamada Rajneeshpuram, no Oregon, nos Estados Unidos, na década de 1980. Sheela foi apontada como braço direito fiel e implacável do guru, e sua devoção na defesa dos interesses de Osho é um dos temas centrais da série.

Osho negou qualquer envolvimento com os crimes de Rajneeshpuram. Colocou a culpa de todos eles sobre Sheela. Ele morreu em 1990; ela serviu 39 meses em uma prisão nos EUA, antes de se mudar para a Suíça.