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Caso Saul Klein

A investigação envolvendo empresário, membro da família que fundou as Casas Bahia, acusado de crimes sexuais por 14 mulheres


Caso Saul Klein: advogadas de 14 vítimas de abuso buscam acelerar inquérito

As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Maíra Recchia (à esquerda) e Priscila Pamela dos Santos: dupla representa 14 vítimas que denunciaram o empresário - Fernando Moraes/UOL
As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Maíra Recchia (à esquerda) e Priscila Pamela dos Santos: dupla representa 14 vítimas que denunciaram o empresário Imagem: Fernando Moraes/UOL

Camila Brandalise e Pedro Lopes

De Universa, em São Paulo

25/03/2022 04h00

Depois de um ano e meio desde que um grupo de mulheres denunciou o empresário Saul Klein, 68, por crimes de violência sexual —incluindo lacerações nas partes íntimas—, cárcere privado e transmissão de doenças venéreas, entre outros, o caso está travado por sucessivas trocas de delegados responsáveis pelo inquérito e pela dificuldade da polícia em encontrar testemunhas chave, que precisam depor mas ainda não foram localizadas.

A investigação está na fase inicial, dos depoimentos, mas as novas advogadas das vítimas, as especialistas em violência contra a mulher Priscila Pamela dos Santos e Maíra Recchia, acreditam que já há provas suficientes nos relatos das jovens para confirmar as denúncias. Agora, elas planejam não só agir para que o inquérito caminhe mais rapidamente como também vão entrar com um processo civil pedindo indenização por danos morais e materiais para que as garotas sejam ressarcidas —em um caso como esse, o valor pedido individualmente pode chegar a R$ 2 milhões. No total, 14 vítimas fazem parte do processo contra Klein na Justiça. O empresário nega todas as acusações (informações sobre os argumentos da defesa podem ser encontradas no final deste texto).

Leia abaixo trechos da entrevista com as advogadas.

As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Priscila Pamela dos Santos (à esquerda) e Maíra Recchia  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Em entrevista, advogadas falam da ação indenizatória contra Klein
Imagem: Fernando Moraes/UOL

UNIVERSA - Poderiam nos relembrar a cronologia do caso?
PRISCILA PAMELA DOS SANTOS -
Em setembro de 2020, algumas garotas começaram a se entender vítimas de crimes violentos praticados por Saul Klein e procuraram um projeto que se chama Justiceiras [de acolhimento de mulheres] para expor os abusos aos quais elas haviam sido submetidas. Conforme esses relatos foram sendo colhidos e repassados ao Ministério Público, o que começou como alegação de fraude sexual ou eventual crime de estupro passou a ser também de tráfico de pessoa, cárcere privado, transmissão de doença venérea, uma série de tipos penais. O inquérito foi instaurado. É um caso complexo e nós perdermos bastante tempo na colheita de elementos. Então, o que se tem de lá para cá são depoimentos.


Qual a situação da investigação atualmente?
SANTOS -
Temos os depoimentos de todas as 14 meninas que se dispuseram a ser ouvidas e vários laudos psicológicos e psiquiátricos, pois os danos são enormes já que tem aí tentativas de suicídio, um suicídio consumado e várias ainda têm acompanhamento psicológico porque se encontram completamente abaladas. É o que vai dar materialidade porque são crimes que ocorriam em um ambiente fechado e que outras pessoas não tinham como ter acesso e presenciar. Só quem vivia ali, naqueles espaços, é que pode contextualizar. Também temos a versão apresentada pelo Saul Klein. Vamos pedir para serem colhidas imagens de câmeras de segurança, como registros de entradas em um flat onde garotas alegam terem sofrido violências. É um caso bastante complexo, poucos elementos foram produzidos, mas são de grande substância. Já confirmam a prática que acontecia naqueles ambientes e que colocavam essas meninas em uma condição de sub-humanidade.

Quais são esses elementos?
SANTOS - São vários. Os depoimentos delas são muito consistentes. Aliados aos laudos médicos e psicológicos, apontam para uma situação de afronta à dignidade delas. Isso acontecia desde o primeiro contato com alguém do esquema, quandos elas eram convidadas para um trabalho de modelo e chegavam para uma entrevista, para a realização de um desfile ou algo nesse sentido, e eram surpreendidas com a notícia de que teriam que ir para o quarto para serem testadas por um homem. Há esse aliciamento, essa conduta fraudulenta que usa essas meninas para que cheguem nesses espaços e, ali, elas serem submetidas a atividade sexual. Algumas, inclusive, menores de idade.

A partir de então, ele aprovava ou desaprovava as meninas. Elas tinham que se enquadrar no perfil, que tinha que ser bastante infantilizado. Também precisam demonstrar uma cultura que a maioria não tinha porque era muito jovem, muito humilde. Elas relatam ter um histórico de vida de dificuldades financeiras na família, então não tinham essa bagagem que ele exigia, mas eram treinadas para dizerem que eram pessoas da alta sociedade, escolarizadas. Para ele era muito importante que as meninas fossem muito jovens e falassem como crianças. Além disso, há vários outros pontos. Uma coisa que elas dizem é que ele não cortava as unhas e machucava as partes íntimas delas. Elas ficavam ali sangrando e não podiam buscar atendimento médico porque estavam dentro daquele ambiente e não podiam sair. Isso é cárcere privado, já que elas não podiam sequer escolher quais eram as médicas ou médicos de confiança a quem se submeteriam.

As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Priscila Pamela dos Santos (à esquerda) e Maíra Recchia  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Depoimentos das vítimas já trazem provas de que houve crime, afirmam advogadas; defesa de Klein nega todas as denúncias
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Como será a nova ação que será feita pelas vítimas com pedido de indenização monetária?
MAÍRA RECCHIA - A ideia é fazer uma análise de cada caso individualmente. A lei fala que se a prática de um ato ilícito causar prejuízo ao outro, a pessoa fica obrigada a reparar o dano. Houve dano moral por causa do abalo psíquico gerado pelos abusos. E, a partir do momento que essas garotas sofrem isso, a capacidade laborativa delas diminui. Elas não conseguem se recolocar ou então estar no mesmo patamar da corrida no mercado de trabalho porque estão emocionalmente abaladas.

Ele deve ser processado e eventualmente julgado para reparar esse dano moral e material, que é o que elas deixaram de ganhar e também por tratamentos psiquiátricos que eventualmente elas precisaram. Vamos analisar caso a caso.

O dano moral é difícil de mensurar, então o juiz vai fazer uma análise do escopo de todo o processo para tentar imprimir em valores financeiros aquela dor. Tem também a questão pedagógica. Nessa indenização, vamos incluir alguma iniciativa no sentido de promover cursos com relação à questão do gênero, ao combate à violência contra mulher, aos abusos sexuais.

Saul Klein alega que a relação com as garotas era de "sugar daddy", em que ele as bancava. O argumento foi aceito pela Justiça ao serem indeferidas medidas protetivas para as vítimas no início de 2021. O que dizem sobre isso?
SANTOS -
É curioso porque eles não entenderam qual é o conceito de 'sugar daddy'. É uma relação afetiva, de uma pessoa mais velha, e tem os combinados entre ambos, algo completamente diferente da relação entre Saul e essas meninas. O problema é que o preconceito e a nossa estrutura patriarcal fazem com que as pessoas que estejam à frente dessas instituições acolham esses argumentos, de que elas queriam, de que não há nada de errado. Nosso trabalho aqui será de aparar essas arestas, fazer uma demonstração global do que essas violências significam e tentar demonstrar que, quando a gente não entende essas situações como violência, atua reproduzindo o machismo de todos os dias na sociedade. Sem o olhar do machismo, os crimes ficam incontestes.

Essa questão das protetivas é absurda. Elas precisam ter mais respostas da Justiça, e não só elas. Como mulher, queremos nos sentir seguras, validadas. É uma resposta que a sociedade precisa como um todo. É muito triste ver o Estado dar essa resposta e com algo claro: elas foram procuradas depois que os depoimentos foram para a mídia, para pararem de falar. Foram ligações, e-mails, e ainda assim a protetiva, para que ele não pudesse contatá-las de nenhuma maneira, foi indeferida.


RECCHIA - Isso dá a noção de como o Judiciário é. Prefere levar em consideração as alegações da defesa, muito machista e agressiva em relação às vítimas, a basicamente proteger a saúde física e mental delas. A partir do momento que o Judiciário, ao se pesarem essas questões, faz uma opção em favor da defesa, do acusado, passa um recado muito claro para a sociedade, de que esse tipo de conduta ainda é naturalizado.

Essas garotas não tinham a condição de negociar e, nessa outra relação, de 'sugar daddy', as pessoas têm combinados claros. É um argumento inaceitável.

As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Priscila Pamela dos Santos (à esquerda) e Maíra Recchia  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Pedido de indenização por danos morais e materiais têm como base o abalo psicológico causado nas vítimas após abusos, diz a advogada Maíra Recchia (à direita)
Imagem: Fernando Moraes/UOL


O caso já teve quatro delegados diferentes desde o início do processo. Apontariam algum problema em relação a isso?
SANTOS - A estrutura administrativa da polícia é, de fato, muito rotativa. Os delegados mudam muito. Abrem-se novos postos de delegacia, eles são redirecionados, acontece muito e não é exclusivo desse caso. Isso prejudica? Sim, porque a cada vez que se troca a autoridade policial que preside o procedimento, essa pessoa tem que tomar a frente de tudo, começar a entender e adotar as diligências dali para a frente.

Há prejuízo, mas também faz parte da questão administrativa. O delegado ou delegada é responsável por reunir elementos, e isso está acontecendo. Demora? Demora. É comum a demora? Infelizmente é, faz parte da administração pública, que não investe nessas estruturas.

O machismo que citam fazer parte da investigação e do Judiciário também faz parte da opinião pública?
SANTOS -
Sim. Se fosse uma agressão física que tivesse acontecido logo antes da denúncia, a complexidade seria menor. Aqui, tudo se confunde muito e mostra como nosso preconceito é grande. As pessoas dizem: 'Ah, mas elas voltavam depois'. Sim, porque a partir de então elas começam a mudar de vida, conseguem sair de um nível que elas não tinham acesso a nada para ter acesso às coisas, isso acabou criando dependência financeira.

Ela conseguia, em uma semana indo encontrar Saul Klein, alcançar valores financeiros que a mãe não alcançou a vida toda. Nesse caso a gente precisa desmistificar todos esses preconceitos que trazemos para, de fato, olhar para todos os crimes que foram praticados e para o quanto essas meninas foram violentadas, e ainda seguem sendo, porque não há uma resposta judicial à altura.

As novas advogadas de acusação do caso Saul Klein, Priscila Pamela dos Santos (à esquerda) e Maíra Recchia  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Advogadas atendem as 14 vítimas que fazem parte do processo por meio do projeto She Law, fundado por ambas
Imagem: Fernando Moraes/UOL

RECCHIA - Inclusive a dificuldade de outras vítimas denunciarem se deve a não ter nenhuma responsabilização sobre ele até agora. Essas meninas foram expostas, muitas estão extremamente vulneráveis e não tiveram nenhuma resposta do Estado até esse momento. As demais pensam: 'Como vou entrar nessa batalha também?' Só a partir do momento que a gente tem uma resposta estatal é que conseguirá mensurar o tamanho dessa catástrofe que ele promoveu.

Nós estamos atendendo essas mulheres por meio de um projeto voluntário do nosso escritório que se chama She Law. Acredito demais no uso do direito como transformação social. Elas ganham com a nossa entrada e nós também ganhamos muito em também abrir precedentes no sistema que, volto a dizer, é machista, racista e patriarcal. A ideia é que a gente faça desse caso uma forma de se criar um outro olhar para outras vítimas, para que elas sejam ouvidas e para que os culpados de fato sejam penalizados

Quando o inquérito será finalizado?
SANTOS -
O prazo de conclusão de um inquérito é de 30 dias, e isso vai sendo dilatado. O caso pode ficar em andamento por muito tempo, e o que delimita não ser eterno é o prazo de prescrição dos crimes. Aqui, os prazos, pela dimensão e gravidade dos crimes, são longos.

Agora, a conclusão do inquérito está prejudicada, e vamos tentar resolver isso. Nós precisamos ter outras diligências. Mas dizer que isso vai acontecer em um mês, dois meses ou um ano é impossível.


Outro lado: Klein nega acusações, reforça que relação era de "sugar daddy" e afirma ser vítima de extorsão

Universa conversou com o advogado de Saul Klein, André Boiani e Azevedo, em abril de 2021 e outubro de 2020. Nos dois momentos, Azevedo defende que o empresário não praticou qualquer ato ilegal ou violento, nega todas as acusações e reforça que a relação com as garotas era de "daddy". Por meio desse relacionamento, ele manteria um pagamento, mas não por sexo, em que ele sustentaria as jovens, trata todas como namoradas. "Essa é a verdade em relação ao Saul", diz o advogado.

Azevedo afirma que nunca houve pagamentos diretos às moças por parte de Klein, pois isso seria intermediado pela agência contratada, a Avlis. "Saul sabia que contratava moças de uma empresa para estarem nos eventos, e elas saberiam que poderia haver aproximação sexual, mas que não seria obrigatório. Nada do que se diz em termos de violência, de obrigatoriedade, de coação, ele participou", afirma Azevedo.

Diz, ainda, que as denúncias contra seu cliente são parte de uma tentativa de extorsão da dona da Avlis, Marta Gomes da Silva, após ela ter seus serviços dispensados em 2019. Klein, no entanto, não registrou denúncia de extorsão contra Marta.

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.

Se houver intuito de denunciar, a orientação é buscar uma delegacia especializada em atendimento a mulheres. Caso não haja essa possibilidade, os registros podem ser feitos em delegacias comuns.