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Saul Klein: troca de delegados e intimações travam inquérito sobre abusos

Camila Brandalise e Pedro Lopes

De Universa, em São Paulo

25/03/2022 04h00

"Tive minha primeira overdose de medicamentos. Cortei o pulso e tomei 12 pontos. Quando voltei para casa, no meu celular tinha um monte de ligação da Marta. Saul queria me ver. E eu vim. E ele fez sexo comigo com os pontos, sabendo que eu tinha acabado de tentar o suicídio [...] E eu só ouvia: ele é tão bonzinho, está tão preocupado com você. E eu acreditava."

A crueza dos detalhes do relato de estupro feito por Gisele*, uma das vítimas que denunciaram o empresário Saul Klein, 68, se repete nos testemunhos de outras quatro mulheres, todas ouvidas por Universa e Mov.doc para a produção do documentário exclusivo "Saul Klein e o Império do Abuso", que estreia no dia 29 de março e revela um retrato minucioso dos abusos que teriam sido cometidos por Klein em suas propriedades. "Quero justiça. Pela menina que fui e pela menina que eu poderia ter sido", diz a garota.

As mulheres fizeram as primeiras denúncias em setembro de 2020 à promotora de justiça Gabriela Manssur e foram encaminhadas ao projeto Justiceiras, idealizado por ela, sob liderança jurídica da advogada Luciana Terra Villar. As vítimas passaram por acolhimento psicológico e orientação jurídica, e as denúncias foram levadas à Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri.

Dezoito meses após o início da investigação e um ano depois que Universa publicou uma série de reportagens com trechos de depoimentos de nove vítimas, o inquérito já passou por quatro delegados responsáveis: Ivna Schelble, Eynard Bertho Ferreira Junior, Amelia Gonçalves Bretas e a atual, Priscila Camargo, que assumiu o comando da delegacia em fevereiro deste ano. A rotatividade foi motivada pelas constantes trocas feitas no comando da Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri.

Schelble estava à frente da DDM desde 2016, de acordo com o Diário Oficial do Estado de São Paulo. Depois de sua saída, em junho de 2021, foram três trocas de delegados em oito meses. A produção do documentário tentou contato com todos eles desde outubro de 2021, mas nenhum quis dar entrevista. Um deles, já fora das investigações após assumir outra delegacia, chegou a dizer à reportagem que 'não falaria nem amarrado'.

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre as motivações para as constantes trocas de delegados na DDM. Em nota, o órgão afirmou que "as mudanças de autoridades policiais ocorridas na Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri foram pleiteadas pelos próprios delegados de acordo com suas preferências e disponibilidade da instituição".

"Isso prejudica o andamento do inquérito porque, a cada troca, a nova autoridade policial que preside o procedimento precisa tomar conhecimento de tudo e adotar as diligências. Infelizmente, essa demora é comum", afirma a advogada Priscila Pamela dos Santos, especialista em violência contra a mulher. Priscila e Maíra Recchia, fundadoras do projeto She Law, que atende mulheres voluntariamente, acabam de assumir a representação das vítimas.

A estratégia das advogadas prevê pressionar as autoridades para que pessoas consideradas peças-chave deponham —algumas nem sequer foram localizadas. Entre elas, está Marta Gomes da Silva, apontada pelas vítimas e por Saul como cabeça de toda a rede de aliciamentos. Marta recebeu diversas intimações para depor, mas até hoje não se apresentou à polícia. A reportagem tenta contato com ela desde dezembro de 2020, mas nunca obteve resposta.

Elas também planejam entrar com um novo processo civil pedindo indenização por danos morais e materiais para que as garotas sejam ressarcidas pelos abalos que sofreram desde que foram sugadas para dentro do esquema. O objetivo é fazer o processo criminal avançar, agilizando perícias específicas e apontando as questões de gênero que perpassam toda a história. "Vamos pedir para que sejam colhidas imagens de câmeras de segurança, como registros de entradas em um flat onde as garotas alegam ter sofrido violências", exemplifica Priscila dos Santos.

Ilustração do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

"Ele não parava"

Gisele está entre as 14 mulheres que denunciaram o empresário Saul Klein, filho mais novo do fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, que morreu em 2014. Para atrair as jovens, era prometido um trabalho como modelo. Segundo elas, o que deveria ser uma entrevista de emprego virava um abuso sexual. Fraude, lesão corporal, favorecimento à prostituição e tráfico de pessoas também estão na lista dos crimes pelos quais Saul passou a ser investigado pela polícia após a denúncia coletiva, apresentada em setembro de 2020.

Após as denúncias virem à tona, vítimas dizem ter sido procuradas, por meio de mensagens e ligações anônimas, para deixarem o processo e pararem de falar sobre o caso em troca de dinheiro. Para Priscila, esse comportamento dá um sinal perigoso. "Isso pode ter acontecido também com testemunhas importantes, para que não depusessem", diz. "Não posso afirmar mas, neste contexto, nos possibilita pensar que isso é possível."

Em março do ano passado, o grupo sofreu um primeiro revés jurídico, em despacho do juiz Fábio Calheiros do Nascimento, da 2ª Vara Criminal de Barueri. Ele negou medidas protetivas a 18 mulheres e revogou as já concedidas a outras 14. O magistrado ainda devolveu ao empresário seu passaporte, que estava retido desde novembro de 2020. A decisão acatou o argumento da defesa de Klein de que as garotas seriam "sugar babies" —parte da relação "sugar daddy", termo que designa homens mais velhos que têm o fetiche de sustentar financeiramente mulheres mais novas em troca de afeto ou relações sexuais.

Essa tese ainda é sustentada por André Boiani e Azevedo, advogado de Saul Klein. Azevedo conversou com Universa em abril de 2020 e outubro de 2021 e também aparece no documentário. Nos dois momentos, defendeu que o seu cliente não praticou qualquer ato ilegal ou violento e disse que todas as relações foram consensuais —afirmação que destoa das histórias contadas pelas moças.

"Ele tem uma barriga enorme e pressiona a gente, ele segura a gente. E ele já foi colocando, forçando sexo anal. Ali foi quando eu comecei a pedir para parar, e ele não parava", relatou uma das vítimas à produção do documentário, entre lágrimas.

"Na relação 'sugar daddy', os combinados são claros. Algo muito diferente da relação de Saul com essas garotas, que não tinham condições de negociar. Essa interpretação do judiciário naturaliza a conduta violenta e aumenta a vulnerabilidade das denunciantes. As outras vítimas pensam: 'Como vou entrar nessa batalha?'", diz Maíra Recchia.

Ainda assim, as duas estão otimistas em relação à contundência das provas e às chances de um resultado favorável às vítimas. "Temos depoimentos consistentes, aliados a laudos psicológicos e psiquiátricos. Houve tentativas de suicídio, um suicídio consumado, e várias delas estão sob acompanhamento psicológico. Algumas, inclusive, eram menores de idade quando entraram no esquema", explica Santos.

Ilustração do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

O que acontecerá após a investigação?

O prazo normal para a conclusão de um inquérito é de 30 dias. Se não houver resolução do caso, esse período pode ser estendido até acabar o prazo de prescrição dos crimes investigados. O prazo de prescrição para o crime de estupro com pessoa entre 14 e 18 anos, uma das denúncias contra Saul, por exemplo, é de 20 anos, também período prescritivo máximo previsto pela lei brasileira.

Quando o inquérito for encerrado, a polícia informará se há indícios para a abertura de um processo criminal. O Ministério Público, por sua vez, também analisará o inquérito e poderá apresentar uma denúncia à Justiça, que a aceitará ou não. No primeiro caso, ele se torna réu —os crimes podem mudar ao longo da investigação mas, por enquanto, seguem os mesmos do início: "organização criminosa, tráfico de pessoas, estupro, lesão corporal grave, lesão corporal gravíssima, favorecimento à prostituição e exploração sexual, mediação para satisfazer a lascívia, favorecimento da prostituição e exploração sexual e falsificação de documentos públicos", de acordo com o MP.

Não há previsão de data para um possível julgamento. Se a sentença em primeira instância sair após o empresário completar 70 anos —hoje, ele tem 68— a prescrição máxima, que é de 20 anos, cai pela metade, segundo a lei brasileira. Saul pode beirar os 80 quando for julgado em última instância, mas isso só ocorrerá se a denúncia não prescrever até lá. Caso prescreva, mesmo que seja condenado, não haverá punição.

Se for condenado na esfera criminal, a pena vai variar de acordo com os crimes julgados mas, entre os que já se investigam, o tempo de prisão varia entre dois e 12 anos. Para a esfera cível, a condenação seria pagamento de indenizações, mas os valores ainda não foram estabelecidos. A quantia a ser pedida em um processo dessa natureza pode chegar a R$ 2 milhões.

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada.