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'Unha cortava por dentro': vítimas de Saul Klein revelam novos detalhes

Camila Brandalise e Pedro Lopes

De Universa, em São Paulo

25/03/2022 04h00

"Eu tinha 17 anos. Uma mulher atrás de mim tirou meu vestido, me levou para o banheiro, me deu um tubo de xilocaína, me mandou agachar e introduzir o [conteúdo do] tubo no ânus. Fui para o quarto e, ali, ele começou tudo. Quando terminou, eu só chorava."

"Ele tem uma barriga enorme que pressiona, segura a gente. Ele foi colocando, forçando o sexo anal. Comecei a pedir para parar, e ele não parava."

"Ele não gostava de cortar a unha, pedia para a gente lixar. A unha comprida arranhava. Já cortou menina por dentro."

"Ele" é o empresário Saul Klein, 68, filho do fundador das Casas Bahia, Samuel Klein (morto em 2014). Saul é investigado pela polícia desde setembro de 2020, em um processo envolvendo 14 jovens que o denunciam por estupro, lesão corporal e transmissão de doença venérea, entre outros crimes.

As mulheres fizeram as primeiras denúncias em setembro de 2020 à promotora de justiça Gabriela Manssur, e foram encaminhadas ao projeto Justiceiras, idealizado por ela, sob liderança jurídica da advogada Luciana Terra Villar. As vítimas passaram por acolhimento psicológico e orientação jurídica, e as denúncias foram levadas à Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri.

Esses relatos são de algumas das vítimas de um esquema de aliciamento que começava com a promessa de um trabalho como modelo e logo ganhava contornos de um jogo de manipulação psicológica e financeira que incluía violências sexuais. Cinco dessas jovens abriram os detalhes sobre os abusos que sofreram em depoimento exclusivo para o documentário "Saul Klein e o Império do Abuso", produzido por Universa e Mov.doc, que estreia no dia 29 de março.

Foram quatro dias de gravações no estúdio do UOL, em São Paulo. Uma garota veio acompanhada de sua mãe; duas, da advogada, que era a mesma. Outras duas estavam sozinhas. Cada depoimento durou quase duas horas e era entremeado por pausas, silêncios, copos de água e lenços para que elas limpassem as lágrimas. Atrás das câmeras, os integrantes da equipe do documentário precisaram conter a emoção.

O advogado do empresário, André Boiani e Azevedo, também foi ouvido pela reportagem. Ele nega todas as acusações contra Saul. Diz que ele tinha, sim, relações com as mulheres, mas que não houve qualquer tipo de ato violento. "Ele mantinha relações consentidas com essas moças. [...] Essa aproximação não dava a ele direito algum de manter relações sexuais forçadas com quem quer que fosse, tanto é que não ocorreram", afirma Boiani.

Ilustração do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

"Comecei a chorar, e uma assistente disse que aumentaria meu cachê"

Gisele* conta que se viu pela primeira vez diante de Saul após ser sondada para uma vaga de trabalho como modelo. No encontro, porém, se deu conta de que o emprego era outro: seria acompanhante de um grande empresário e faria um teste com ele. Mas, mesmo dizendo que não queria e pedindo para ir embora, foi estuprada.

"Assim que saí do quarto dele, a Puca [uma das aliciadoras] veio e disse: 'Amiga, você passou, ele falou que você é ouro'. Como se ela estivesse me dando estrelinha, dizendo: 'Você fez o trabalho certo'", relembra a jovem.

"Eu só chorava. Ela dizia para eu parar de chorar, que ia aumentar meu cachê, falando que eu ia para a casa dele. Falei que não queria ir. Continuava chorando, e ela dizendo: 'Vou aumentar R$ 1.000'. Nunca tinha visto tanto dinheiro na vida, minha mãe é empregada doméstica", conta.

Ilustração do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Unhas compridas, HPV e agressões

Cortar as unhas não era um hábito de Saul, segundo relatam diversas vítimas que frequentavam suas residências. E era com as unhas longas que ele machucava as jovens que iam a suas casas, dizem. "Ele colocava o dedo nas minhas partes íntimas, me machucou", afirma Clara*. "Quando isso acontecia, já tinham pomadas lá preparadas para as meninas usarem", relata Gisele.

Os remédios, segundo as vítimas, eram prescritos pela ginecologista Silvia Petrelli e pelo cirurgião plástico Ailthon Takishima, que frequentavam a casa de Saul para atender às garotas. Ambos foram procurados pela reportagem, mas não quiseram se pronunciar.

Eram os médicos também que se responsabilizavam pelos tratamentos de doenças venéreas. Segundo as garotas, Saul ou se recusava a usar camisinha ou dizia que usava um preservativo em gel, vindo dos Estados Unidos. "Todo o mundo lá pegou HPV", diz Gisele. "Ele tinha clamídia e queria ter relação mesmo assim", afirma Mariana*.

A clamídia é uma infecção sexualmente transmissível que pode afetar homens e mulheres, atinge especialmente a uretra e órgãos genitais, mas pode acometer a região anal, a faringe e ser responsável por doenças pulmonares. Além disso, é uma das causas da infertilidade masculina e feminina.

"Dizer que ele expunha essas moças a doenças venéreas é absolutamente falso, na medida que os médicos estavam lá justamente para o contrário. Isso demonstra o cuidado dele", argumenta Boiani.

Também se repetem relatos de garotas chorando. Se não elas próprias, suas colegas. "Na primeira festa a que fui, entrei no quarto e estava todo o mundo pelado. Comecei a chorar, não queria ficar ali. A Ana Banana [aliciadora] me pegou pelo braço e disse : 'Você está louca?' Não vai receber nada'", relembra Gisele.

"Às sextas-feiras, ele sempre ficava com uma menina nova, e eu acompanhava eles no quarto. No ato, em que ele estava transando com elas, eu tinha que auxiliar. Nunca vou me esquecer de uma menina que chorava, pedia para ele parar. Eu passava a mão nela, falava para ficar calma, dizendo que estava tudo bem, que logo ia acabar", relata Juliana*.

Também em um depoimento que faz parte do documentário, Gisele afirma ter presenciado uma agressão e uma situação de cárcere privado. "Uma vez, ele tentou enforcar uma menina. Ela quis ir embora, ficou desesperada, mas o segurança não deixou. Falou que não ia perder o emprego por causa de uma 'putinha'."

"Nos obrigava a ver filmes de estupro infantil"

Além dos atos de violência sexual relatados pelas vítimas, outras situações também as faziam se sentir intimidadas e agredidas sexualmente, mesmo quando não havia contato. "Ele queria assistir a filme de estupro infantil, de tortura, era muito intimidador. Todos do esquema sabiam que as meninas que entrassem lá não vinham de uma família rica, que seriam intimidadas. Ele sabe o alvo que quer", afirma Clara.

Emular estupro infantil, de acordo com relatos, também era uma constante na rotina da casa. "Nas festas, havia brincadeiras. Tínhamos que pagar uma 'prendinha'. Era tudo muito infantilizado. Se tivéssemos que 'beijar o rosinha da menina', significava fazer sexo oral", conta Gisele.

Ilustração do documentário "Saul Klein e o Império do Abuso" - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

"Ele quis ter relações logo depois que eu tentei me matar"

Os reiterados abusos e a falsa sensação de normalidade em relação ao que desempenhavam nas casas de Saul desencadearam uma série de problemas psíquicos nas vítimas, elas afirmam. Os médicos contratados pelo empresário, mesmo tendo especialidade em ginecologia e cirurgia plástica, teriam oferecido antidepressivos às jovens sem acompanhamento adequado.

"Um dia, falei para a Deia [aliciadora] que queria me matar, não estava bem. O médico [Ailthon Takishima] estava passando e perguntou: 'Como assim?'. Me passou o meu primeiro antidepressivo. Um cirurgião plástico", diz Gisele.

"Tive a primeira overdose de medicamentos. Cortei o pulso, levei 12 pontos. Quando cheguei em casa do hospital, no meu celular tinha um monte de ligação da Marta [Gomes da Silva, apontada por vítimas e por Saul como cabeça do esquema]. Ela disse que eu precisava vir para São Paulo, que o Saul queria me ver. E eu vim. Ele fez sexo comigo com os pontos, sabendo que eu tinha acabado de tentar suicídio, que estava com depressão. Mas diziam que ele era tão bonzinho, que estava preocupado comigo. Eu acreditava."

"Detalhes são importantes para que o foco se mantenha no denunciado", diz advogada

Embora revelar detalhes de uma violência sexual possa expor mulheres e fazê-las reviver o trauma, a atitude é importante para, com isso, mostrar que não deve haver vergonha ou culpa pelo que viveu.

"Naturalmente, o estigma do estupro recai sobre a vítima, que é questionada sobre por que permitiu que o crime acontecesse com ela. Mas a questão é que ela não praticou a violência com ela mesma", diz a advogada Marina Ganzarolli, especialista em direito da mulher e fundadora do Me Too Brasil.

"Quanto mais detalhes ela puder dar, de forma mais sem peso e sem estigma, mais mantemos o foco no réu, no que aconteceu, e não no julgamento em cima delas. Não estamos falando sobre sexo, mas sobre violência."

Para Ganzarolli, toda vítima deveria dar um depoimento detalhado, para que as pessoas consigam assimilar o caso a partir da perspectiva da dor do trauma e do sofrimento que os abusos causam. "Mas sei que as consequências de revisitar, para as vítimas, são enormes."

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.

Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.

Se houver intuito de denunciar, a orientação é buscar uma delegacia especializada em atendimento a mulheres. Caso não haja essa possibilidade, os registros podem ser feitos em delegacias comuns.

*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.