Topo

'Perdi mãe e irmã em feminicídios e escapei de ser morta por meu ex-marido'

A assistente social Girlandia Conceição dos Santos - Reprodução
A assistente social Girlandia Conceição dos Santos Imagem: Reprodução

Girlandia Conceição dos Santos em depoimento a Roseane Santos

Colaboração para Universa

27/02/2022 04h00

"Tenho 49 anos econheço o feminicídio desde os dez. O meu pai matou a minha mãe com 38 facadas. Ela já era vítima de violência doméstica há tempos, desde o primeiro casamento, mas nesse caso meu avô, pai da minha mãe, tirou ela de casa por causa das constantes agressões que sofria do companheiro. Depois, ela acabou casando com um segurança, meu pai. Na verdade, era um pistoleiro que tomava conta de fazendas, um homem de confiança do meu avô.

Desse segundo casamento nasceram quatro filhos. Lembro uma vez que ele bateu nela e eu estava junto, rolamos morro abaixo. Fiquei bem machucada. Mudamos da Bahia para Vitória para escapar dessa violência. Só que meu pai veio atrás. Pedia para voltar e queria que minha mãe largasse o emprego. Falava que não deixava faltar nada em casa, e era verdade. Nosso lar tinha muita fartura. Nosso padrão de vida era mais alto do que os vizinhos na nossa comunidade.

Meu pai ficou doente e minha mãe acabou acolhendo ele na nossa casa. Em uma das brigas, quando viu que ela não iria mesmo voltar a ser mulher dele, a matou. Ele não foi preso e fugiu. Nunca mais o encontramos.

Passaram-se alguns anos e perdi uma irmã, filha primeiro casamento da minha mãe, também vítima de feminicídio. O marido dela a matou dentro de uma pousada.

Eu percebi a tempo que poderia ser a próxima a perder a vida desse jeito. Sofri todos os tipos de violência do pai dos meus filhos. Era violência patrimonial, emocional e física. Ele me prendia pela tortura psicológica, dizendo que eu era fria e feia. Jamais despertaria nada em outro homem. Demorei muito a sair desse processo. Ele pegava a faca e lembrava o que aconteceu com a minha mãe e minha irmã.

"Me assumi lésbica"

Chegou um determinado momento que eu bati o pé e disse não queria mais continuar casada. Sofri muito, tive que dar queixa na polícia e pedir medida protetiva. Na cabeça dos meus três filhos, eu era a errada. Afinal, eu saí de casa. Graças a Deus muitas pessoas me apoiaram e, hoje, estou aqui para contar esse relato.

Fiquei cinco anos sem me envolver com ninguém, mas depois arrumei outro companheiro. Durante quatro anos, ele me tratou como princesa. Mas percebi que não tinha tanto desejo por homens. Então, aos 40 anos, me assumi como lésbica.

Participava de movimentos sociais e conheci o coletivo Santa Sapataria, aqui em Vitória, que é formado por mulheres lésbicas. Nós lutamos para garantir direitos e respeito diante da sociedade. Vivi com minha primeira companheira por seis anos e, hoje, estou com a Maria. Minha atual companheira foi fundamental no apoio para eu terminar minha faculdade de Assistência Social, em 2019. Tenho esse diploma, mas ainda trabalho como diarista.

"Quero dar palestras sobre violência doméstica, pois sou uma sobrevivente"

A cozinha me lembra dos ensinamentos da minha avó. Algumas pessoas na minha comunidade me chamam de bruxa, pois se tem uma criança com febre, preparo logo um chá de alecrim ou algo assim. Faço um banho, orações. Dentro do conceito da alimentação, veio também o meu resgate para viver.

Aprendi muitas coisas sobre culinária natural e agora estou comercializando pratos. Acabei percebendo que determinadas ações dentro desse conceito alimentar emitiam um chamego no coração dos meus amigos. No dia do aniversário dos meus amigos aqui na comunidade, faço um café da manhã com bolinho de chuva, bolo, chá e vou com a bandeja bater na casa da pessoa. Nem todo presente é dinheiro, viagem ou algo caro, às vezes é só um carinho.

Já participei também de um grupo que fazia o resgate de como usar as ervas medicinais na comida, em escalda pés e em banhos. Agora, estou me dedicando à criação de um projeto de como atender as mulheres de uma forma mais ampla por meio da assistência social. Não quero mostrar amargura, e sim, afeto.

Trabalho como empregada doméstica durante a semana e faço esses cafés e pratos da culinária natural -- os principais são siri vegetal, suco de inhame, patê de inhame e patê de abóbora com frango. Me garante um dinheiro extra no final de semana. Ainda não estou com meu registro no Conselho de Serviço Social, mas pretendo trabalhar só com isso. Quero dar palestras sobre a violência doméstica e mostrar a minha história porque sou uma sobrevivente."