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'Vida das mulheres vale pouco': juristas comentam sentença de Marotti

Rodrigo Alves Marotti foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão, mas não por feminicídio - Reprodução/TV Globo
Rodrigo Alves Marotti foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão, mas não por feminicídio Imagem: Reprodução/TV Globo

De Universa

09/02/2022 15h05

Há pouco mais de dois anos, o engenheiro Rodrigo Marotti trancou a ex-namorada e a amiga dela em um banheiro, ateou fogo no local e, inclusive, bloqueou a saída com o colchão em chamas. As duas mulheres morreram dias depois. Ele, no entanto, não foi condenado por duplo feminicídio.

Marotti foi condenado a 19 anos e 4 meses de prisão pelos crimes de incêndio, que ocasionou nas mortes de Alessandra Vaz e Daniela Mousinho, mas o júri popular que durou mais de 12 horas desclassificou a conduta como homicídio doloso, porque os jurados entenderam que o acusado não teve a intenção direta de matar. Para advogadas e promotora ouvidas por Universa, no entanto, a decisão do júri popular reflete "tolerância da sociedade em relação à morte de mulheres".

Decisão veio do júri, não da juíza

A promotora de Justiça Fabiana Dal'Mas, presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica de São Paulo, explica que, no tribunal do júri, a decisão da juíza deve seguir a decisão dos jurados. Ou seja, se os jurados entenderam que não houve intenção de Marotti de matar as vítimas, a juíza não pode decidir de forma diversa.

"O jurado que está ali é uma pessoa da população, não um técnico em direito. No Brasil, existe uma tolerância e uma invisibilidade em relação à desigualdade de gênero, pelo machismo, pela opressão, pela desigualdade de gênero. Ainda existe uma ideia de que o feminicídio é um crime praticado por amor quando, na verdade, é um crime de ódio, de desprezo ao feminino", fala Fabiana.

A advogada Isabela Del Monde, do Me Too Brasil e colunista de Universa, completa: "O júri toma decisões com base nas provas apresentadas e nas narrativas que foram construídas, mas, claro, também toma decisões com base em seus próprios valores. E ainda há, no Brasil, uma grande percepção de que a vida das mulheres vale muito pouco.

Decisão é contraditória

A advogada Mariana Tripode, professora na Escola Brasileira de Direito das Mulheres, afirma que a decisão do júri é, no mínimo, contraditória.

Ela explica que, para caracterizar o feminicídio, o crime deve envolver qualquer tipo de violência de gênero e deve haver dolo, mesmo que eventual, quando mesmo que não haja intenção, o réu assume o risco de matar.

"O júri não entendeu pelo feminicídio, isso porque eles entenderam que não tinha intenção direta de matar. Entretanto, foi devidamente comprovado que ele ateou fogo, trancou-as e bloqueou a saída. Não haveria portanto qualquer característica suficiente para desclassificar o feminicídio, visto que, neste contexto, o acusado no mínimo assumiu o risco de matar as duas vítimas".

"É nítido que as características de violência de gênero nesse crime foram completamente ignoradas. E esse é um retrato de que o Poder Judiciário ainda não reconhece de fato que existe toda uma estrutura patriarcal, machista e misógina através dessa violência contra nós, mulheres", critica.

"Não consigo imaginar que outra intenção uma pessoa pode ter ao prender outras duas num cômodo, bloquear a saída e colocar fogo ao redor", questiona Del Monde.

Decisão é comum na Justiça

Mariana Tripode afirma que "é clara a resistência do judiciário em condenar réus por feminicídio" e que é comum o entendimento de que o acusado nunca tem a intenção de matar.

"Mesmo com registros policiais, testemunhos das famílias e de pessoas próximas, o feminicídio acaba sendo tratado como crime passional motivado pelo fim de um relacionamento, uma traição, uma rejeição. Assim, a vítima é culpabilizada mesmo após sua morte. Por consequência, o algoz é tratado como alguém temperamental, como se seu comportamento não pudesse ser evitado".

"A decisão do caso Marotti escancara que a justiça brasileira transforma feminicidas e abusadores em vítimas. Não importam as inúmeras provas e testemunhas dos crimes brutais que cometem. O assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres tornou-se endêmico, uma parte do cotidiano brasileiro e portanto, banal", crititica.

Relembre o caso

Em outubro de 2019, o engenheiro Rodrigo Marotti, hoje com 33 anos, teria trancado a ex-namorada Alessandra Vaz e a amiga dela Daniela Mousinho no banheiro da casa da artista plástica, no bairro de Mury, e ateado fogo no imóvel. Ele teria, inclusive, bloqueado a saída com um colchão em chamas para impedir a fuga delas.

As duas mulheres chegaram a ser retiradas do local com vida por vizinhos e conseguiram apontar Rodrigo Marotti como autor do crime, mas não resistiram aos ferimentos. Daniela morreu no dia seguinte e Alessandra dois dias depois, ambas com 80% dos corpos queimados.

O engenheiro tentou fugir do local do crime, mas foi preso logo depois, em flagrante, e aguarda julgamento em uma unidade prisional no Rio de Janeiro.

Alessandra Vaz e Rodrigo Marotti passaram cerca de três anos juntos e estavam separados há pouco mais de um quando o crime aconteceu.

Andresa, irmã de Alessandra, conta que não acompanhou de perto a relação entre ela e Rodrigo porque viviam em cidades diferentes - Andresa em Poços de Caldas (MG) e Alessandra em Nova Friburgo (RJ). Mas conta que, pelo que a irmã dizia, ele era agressivo e nada carinhoso.

Número de feminicídios é alto no Brasil

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública relativos ao primeiro semestre de 2021 mostram que, por aqui, uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas - isto é, em média quatro mulheres morrem todos os dias apenas por serem mulheres.

Assim como aconteceu com Alessandra e Daniela, 75% dos casos de feminicídio no Rio de Janeiro ocorrem dentro de casa e 78% das vezes quem comete o crime é o ex-companheiro da vítima - os dados fazem parte do Dossiê Mulher 2021, do Instituto de Segurança Pública.