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'Em breve não serei mais a única', diz primeira indígena defensora da Bahia

Aléssia foi aprovada e aguarda a marcação da posse como defensora pública - Arquivo pessoal
Aléssia foi aprovada e aguarda a marcação da posse como defensora pública Imagem: Arquivo pessoal

Aléssia Bertuleza em depoimento a Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

12/02/2022 04h00

Eu pertenço ao Povo Tuxá, que é uma comunidade indígena oriunda do município de Rodelas, no norte da Bahia. Em razão do processo de construção da barragem de Itaparica, meu povo foi deslocado e atualmente está em processo de luta pelo reconhecimento e demarcação do nosso território originário.

Os meus pais residem em Rodelas. Sempre que posso, estou por lá junto à comunidade. Inclusive, enquanto advogada, eu atuo com os professores indígenas do estado da Bahia, na orientação jurídica e nas negociações perante o governo do estado, especialmente no atual processo de tentativa de alteração da lei que regulamenta a carreira —cuja minuta de projeto de lei e regulamento tive a honra de redigir, de acordo com os anseios dos professores e conforme negociações com o governo. Hoje eu moro em Paulo Afonso, por motivos profissionais.

Em 2009, quando estava completando 17 anos, fui morar em Feira de Santana para cursar Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana, a UEFS. A partir disso, comecei a advogar, fiz mestrado, comecei a dar aulas na universidade e fui aprovada em concurso, em 2018 como analista da Defensoria. Eu já tinha passado por lá durante a graduação, como estagiária. Foi nesse contato que surgiu o interesse pela carreira.

Agora, fui aprovada no concurso e sou a primeira indígena defensora do estado. Estou na lista de aprovados, mas ainda haverá a homologação e só depois disso teremos nomeação e posse. Não tenho uma área que eu possa dizer "nessa não quero atuar". Considero todas instigantes e espaço de defesa e luta pelos direitos humanos.

Com essa aprovação, nós estamos dizendo ao nosso povo que é possível, que nós podemos sim ocupar essas instituições do sistema de justiça, que o indígena não só pode ir à Defensoria pedir assistência jurídica, que nós também podemos nos tornar membros da instituição. E não só da Defensoria. O objetivo é cada vez mais pautarmos o debate sobre a representatividade e ampliarmos a política de reserva de vagas para indígenas para outras instituições, como já ocorre com a população negra.

Aléssia sempre teve interesse em atuar na defesa dos direitos dos cidadãos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Aléssia sempre teve interesse em atuar na defesa dos direitos dos cidadãos
Imagem: Arquivo pessoal

Enquanto indígena, numa sociedade racista como a nossa, as conquistas são mais difíceis. Todos os dias precisamos reafirmar o nosso direito de existir. Mas enquanto mulher e indígena, pertencente a uma minoria, é ainda mais difícil, porque o racismo e o machismo são situações que causam vulnerabilidades e a intersecção deles é uma grande barreira, que precisa e está sendo ultrapassada todos os dias.

Como analista, atuei na área criminal, em processos do júri e, especialmente, na execução penal. É uma área em que a Defensoria tem uma atuação muito intensa e que me interessa bastante, porque é gritante a diferença que a presença da Defensoria faz no processo penal, assegurando garantias previstas em lei, zelando pela Constituição e para que ilegalidades sejam afastadas.

Porém, há muitas outras áreas da Defensoria igualmente apaixonantes: a proteção à infância e juventude e, claro, a menina dos meus olhos: a tutela coletiva, especialmente na defesa de direitos das comunidades tradicionais.

A Defensoria tem um papel muito importante, que é justamente a defesa dos hipossuficientes, dos grupos vulneráveis. E essa atuação não se limita à representação judicial das partes. Uma das funções da Defensoria é justamente a promoção da educação em direitos por meio de iniciativas que levem informações sobre direitos e acesso à justiça, o que é um importante instrumento de empoderamento.

Poder atuar na defesa de povos tradicionais como membro da Defensoria é algo que me fará duplamente feliz: primeiro, porque é algo que eu sou apaixonada; segundo, porque seria uma forma de fortalecer a ideia de representatividade —que é um dos objetivos das políticas afirmativas como a reserva de vagas. É permitir a esses grupos enxergar que aquela instituição, que lhes atende, também é um espaço a ser ocupado por eles, como membros. É sobre ter alguém como você ali, para entender e atender a sua demanda.

Estou muito feliz em ser a primeira índigena! Mas, ao mesmo tempo, consciente da responsabilidade. Foi um fato que demorou para acontecer, isso não dá para negar; mas que certamente trará muitas consequências boas, dentre elas, a certeza de que em breve eu não serei mais a única.

Uma coisa que eu aprendi a fazer foi não me calar. Muito pelo contrário: a nossa luta é justamente para fazer silenciar as vozes preconceituosas, seja por meio da educação, seja por meio das medidas de responsabilização judiciais cabíveis. Essas vozes, por muito tempo dominantes, não servem para nós porque quem diz o quê/como vamos ser e onde vamos chegar somos nós, donas das nossas vidas, das nossas escolhas e cada vez mais presentes em todos os espaços que por tanto tempo nos impediram de acessar.

Nesse contexto de celebração da aprovação, tem passado um filme na cabeça, algumas histórias têm vindo à tona, algumas saudades também. Entre essas histórias, tenho lembrado muito da minha infância, quando a vontade de estudar em uma escola melhor, aprender um idioma eram enormes, mas a disponibilidade financeira dos meus pais, não.

Quando criança, Aléssia conta que pais tinham dificuldades financeiras - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Quando criança, Aléssia conta que pais tinham dificuldades financeiras
Imagem: Arquivo pessoal

Painho e mainha sempre diziam, com uma clara tristeza, que aquilo era o que eles podiam me dar, mas que eu aproveitasse, estudasse e me dedicasse muito porque a vida não resistia aos determinados.

Houve uma época em que os livros do colégio, embora fosse uma escola pública, precisavam ser comprados. Eu não tinha todos, isso não me impediu de ser a única garota que passou direto naquele ano. Durante toda minha preparação de concursos eu trabalhei —a maior parte do tempo, em dois trabalhos, conciliando a advocacia ou o serviço público com o magistério na graduação— ouvi algumas vezes que trabalhar e estudar era muito puxado e cansativo e por essa razão muita gente acabava deixando de lado o desejo de passar no concurso da carreira sonhada. Mas eu passei. As pessoas que me disseram isso, ainda não.

Essa não é uma história que fala sobre orgulho, mas sobre determinação e persistência, sobre aprender ao longo da vida (no meu caso, desde cedo) que a disciplina é milagrosa. Os obstáculos existem e eu não romantizo dificuldade financeira, cansaço, excesso de trabalho, estudar sem os materiais necessários, nada disso!

Eu só queria dizer, para quem porventura esteja passando por isso, que isso vai passar e você vai alcançar o seu objetivo. Até lá, se cuide, se acolha e persista. A vida não resiste aos insistentes.