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'Sofri abuso, frequentei a antiga Febem e hoje ajudo jovens infratores'

Expedita Celestina passou pela antiga Febem e hoje é agente socioeducativa em Pernambuco - Arquivo pessoal
Expedita Celestina passou pela antiga Febem e hoje é agente socioeducativa em Pernambuco Imagem: Arquivo pessoal

Expedita Celestina, em depoimento a Ed Rodrigues

Colaboração para Universa

29/10/2021 04h00

"Tenho 58 anos e uma história de vida difícil. Na infância, fui atendida pela antiga Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Não como menor infratora, mas como uma menina em situação de vulnerabilidade social e vítima de violência doméstica. O contato com a instituição me ajudou a me reencontrar como pessoa e me deu um norte para o que mais gosto de fazer atualmente: conscientizar jovens infratores por meio do meu trabalho na Funase (Fundação Socioeducativa), em Recife.

Quando cheguei à Febem fiquei assustada com todas aquelas pessoas. Fui levada até ali para receber atendimento por causa da nossa situação financeira familiar, que era bastante precária. Na mesma época tive o entendimento de que meu pai me tocava. Eu tinha uns 12 anos, se não me falha a memória.

Eu e meus irmãos não tivemos uma infância feliz. Não me lembro das brincadeiras. Não as tive. Em Machados, no interior pernambucano, onde morávamos quando crianças, era comum a gente ficar em cima de uma porção de mandioca, raspando para fazer farinha. Só cheguei em Recife em 1968, quando meu pai foi convidado a trabalhar em um sítio como caseiro.

Em pouco tempo, eu já estava frequentando a Febem assiduamente. O trabalho que eles faziam com os jovens era impressionante. Me ajudou muito, porque tive a oportunidade de participar de oficinas e cursos.

Ao sair da Febem, demorou anos para eu arrumar um emprego. Realizei alguns trabalhos com crianças em comunidades depois de me formar no magistério. Depois trabalhei com pessoas em situação de rua. E logo em seguida vi que minha vocação era atuar em casas de acolhimento mesmo.

Fui me adaptando, ajudando em um projeto atrás do outro. Quando trabalhei com o pessoal de rua, vi muita gente que tinha sido minha colega na Febem. Olhava aquela realidade e achava que poderia fazer algo para ajudar.

Resolvi me especializar mais. Fiz vários cursos sobre criança e adolescente na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). Hoje tenho especialização em psicopedagogia clínica e institucional. E também tenho certificado de educador social.

Expedita  - Divulgação/ Funase - Divulgação/ Funase
Expedita Celestina atua como agente da Funase (Fundação Socioeducativa) em Pernambuco
Imagem: Divulgação/ Funase

Até que teve início a minha história na Funase. Fiz uma oficina de arte com os internos como voluntária em Jaboatão dos Guararapes (PE) e anos depois me chamaram para trabalhar novamente. Hoje meu trabalho na Funase é tentar sensibilizar os adolescentes de que eles podem mudar seus comportamentos. Escutar os pais e pessoas que tiveram vidas difíceis, mas que conseguiram superar, e contar essas histórias.

'Ia para a Febem só para poder comer'

Eu conto sobre minha experiência com a Febem e eles se impressionam. Perguntam se eu roubei. Eu disse que roubei flor, roubei goiaba. Conto que roubei manga. Mas que fui parar na Febem porque meus pais eram muito pobres e uma vizinha matriculou a gente.

Na minha época não era para ficar preso. Era um grupo pela manhã e outro à tarde. Muitas vezes íamos para lá só para nos alimentarmos —muitos só tinham aquela refeição no dia. Hoje uso essa experiência para mostrar aos jovens na Funase que podemos crescer, ser melhores e aprender com os erros.

Torço para que levem uma vida melhor do que a que têm agora. Alguns saem do regime fechado muito atordoados. Quando vão para o semiaberto e encontram o apoio e a escuta, eles reagem de maneira diferente.

Ter passado pela Febem mudou a minha vida pelo fato de ter alimentação e um pouco de liberdade. Na época, eu não tinha muita noção do que era a instituição. Ao longo dos anos fui percebendo a importância. Após ter estudado, foi que entendi.

Lá tinha meninos que haviam cometido crimes, mas não eram todos. Muitos estavam pela alimentação e para estudar. Muitos mudaram de vida, como eu. Outros, infelizmente não. E quando temos exemplos positivos, temos que explorá-los. Para que sirvam de inspiração.

No meu caso mesmo, tenho vontade de escrever um livro e mostrar tudo que eu passei. Criar uma espécie de manual autobiográfico para ajudar as pessoas a superarem suas dificuldades."

Expedita Celestina, 58 anos, é agente socioeducativa da Funase, em Recife (PE).