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Vista Chinesa: como história de estupro real se transformou no livro da vez

A carioca Tatiana Salem Levy é a autora de "Vista Chinesa" - Divulgação
A carioca Tatiana Salem Levy é a autora de "Vista Chinesa" Imagem: Divulgação

Lígia Mesquita

Editora de Universa

26/03/2021 04h00

"Desde pequena havia me preparado para chegar ao fim de tudo o que começava, e para dar certo. Mas naquele dia me dei conta de que a fraqueza era a força de que precisava."

É assim que Júlia, a arquiteta personagem do recém-lançado "Vista Chinesa" (Ed. Todavia), desabafa sobre a pressão grande — e machista — em cima da mulher para que ela seja corajosa o tempo todo, termine tudo o que começou, esconda sua fragilidade, mesmo quando ela é vítima de uma das maiores perversidades que o homem comete contra ela: a violação de seu corpo.

Como encontrar força para encarar o luto de um pedaço seu que morre após um estupro e conseguir renascer?

A escritora Tatiana Salem Levy, 42, nos coloca na mente de uma vítima que para sempre levará as marcas daquela violência sexual. E faz isso não varrendo para debaixo do tapete os detalhes que ninguém quer ver, mas escancarando-os, nos transportando para o local onde se materializa o medo que todas nós, mulheres, carregamos desde pequenas.

A história da carioca que sai para correr na Vista Chinesa, um dos cartões-postais do Rio, e acaba sendo estuprada na Floresta da Tijuca, foi inspirada no que aconteceu em 2014 com uma das melhores amigas de Tatiana, a diretora de TV Joana Jabace. Dos relatos de Joana, que dirigiu "Avenida Brasil" e "Segunda Chamada" e é casada com o ator Bruno Mazzeo, a autora decidiu fazer o romance inspirado em fatos reais.

"Esse assunto já me rondava, minha mãe também foi estuprada durante um assalto. Conversando com a Joana, vi a riqueza de detalhes que ela ainda guardava quatro anos depois do que aconteceu e quis escrever sobre essa subjetividade, as marcas que ficam para sempre na vítima", diz a carioca a Universa, de sua casa em Lisboa.

Ganhadora em 2008 do Prêmio São Paulo de Literatura com "A Chave da Casa" (Ed. Record), ela conta que foi Joana quem pediu para ter sua identidade revelada ao final do livro. "Ela quis correr esse risco." Agora, a diretora se prepara para se arriscar mais uma vez: quer transformar em filme o romance que a amiga escreveu a partir de sua experiência.

UNIVERSA - Qual foi sua reação ao saber do estupro de sua amiga? E como acolher quem sofre tal violência?

TATIANA SALEM LEVY - Como moro em Lisboa, minha irmã, que também é muito amiga dela, me ligou para contar o que tinha acontecido, choramos muito. Quando falei com a Joana, ela estava chorando e machucada fisicamente, então teve esse choque visual. E não era a primeira vez que isso acontecia com uma pessoa próxima. Minha mãe e uma outra amiga também passaram por isso.

Os estupros acontecem mais do que a gente imagina. Claro que nunca dá para sentir essa dor pela outra, mas ela toca num medo que todas nós mulheres temos. É como se esse medo se concretizasse. E acende um alerta de que poderia ter sido comigo, com qualquer uma de nós — e foi com uma de nós.

Esse tipo de acontecimento traz a angústia que é a distância do que é essa dor. Sabíamos como ela estava sofrendo, mas ninguém conseguia chegar naquela dor que é só de quem viveu essa violência.

O que te levou a querer fazer um romance inspirado naquele crime?

Depois de alguns meses desse estupro, comecei a ficar com vontade de falar sobre isso, talvez por ter acontecido também com minha mãe; é um medo presente nos meus livros anteriores. Aí vi uma exposição em Paris da artista Taryn Simon com retratos de pessoas inocentes que foram presas por reconhecimento equivocado das vítimas e me deu uma angústia aquela injustiça. Comecei a pensar na investigação policial sobre o estupro da Joana, o despreparo da polícia, a pressão para reconhecer o culpado pelo retrato falado. Vi que podia fazer um romance que mostrasse toda essa complexidade.

Como ela recebeu sua ideia de escrever sobre o que havia acontecido? Houve algum receio?

Ela entendeu e aceitou já de cara. Nós temos muita intimidade e eu sempre falei que faria um romance, que não era a história dela. Mas quando ia começar, engravidei do meu primeiro filho e não quis escrever uma história tão pesada. Fiquei com culpa, achei que poderia passar algo para ele e adiei o projeto. Em 2018, fiquei grávida de novo, de uma menina, e senti necessidade de escrever essa história. Veio essa urgência, esse medo, pensei: não quero que minha filha cresça nesse mundo, preciso contar essa história. Mas não foi algo ativista, não pensei "preciso mudar o mundo porque agora tenho filha". Foi algo mais profundo, visceral.

Já é difícil para uma vítima de abuso falar sobre esse trauma. Acha que, no caso do estupro, é ainda mais complicado?

Sim, esse é o pior dos crimes do machismo — ainda mais quando há uma sobrevivente. E está muito associado à vergonha, à ideia da honra e, principalmente, da culpa.

A mulher ouve que ela deve ter feito algo, que estava no lugar errado, que foi correr no horário errado, com a roupa errada. E tem uma outra questão que torna ainda mais difícil falar: a grande maioria dos estupros acontece dentro de casa e são cometidos pelo pai, padrasto, avô.

Como foi saber que sua mãe também foi abusada sexualmente?

Eu tinha 18 quando ela me contou sobre o que tinha acontecido 14 anos antes. Estávamos no carro e fiz uma pergunta que levou àquele assunto, e ela resolveu responder. Só falamos disso naquele dia e sem muitos detalhes. E, dois anos depois, ela morreu e me perguntei muito: e se ela não tivesse falado? Não seria melhor não saber, não ficar imaginando como foi? Hoje está claro que foi a melhor coisa que ela fez, eu herdei essa história. Acho que no fundo eu sabia o que ela tinha vivido. E esse saber inconsciente, sem ter a palavra, tem consequências piores, se repete de alguma forma.

Como vê essa cobrança em cima das mulheres que sofreram um estupro para serem 'corajosas'?

É um comentário tão machista esse. Me incomoda quando falam: "ai, que coragem da Joana em falar disso". Que lugar é esse de heroína em que colocam as mulheres? A mulher é vítima de um crime violentíssimo e a sociedade machista exige que além de sobreviver, ela tem que ser heroína e ter coragem de falar, de denunciar? Então quem não fala desse trauma é covarde?

Ela está dizendo que foi vítima de um crime. Se você disser que tentaram te matar, de esfaquear, ninguém fala "Nossa, que coragem". É fato que tem que ter coragem para falar de um estupro, de enfrentar muitas coisas como olhares de pena, olhares da família, mas resumir a isso é machista.

Qual foi o maior desafio em narrar essa violência que marca para sempre vida de uma mulher?

Encontrar a linguagem para falar de algo tão indizível. Não se encontra palavra para uma coisa tão horrível, monstruosa. Tem algo que a a personagem fala que é a importância de nomear as coisas. O fato da gente não nomear as coisas não faz com que elas deixem de existir, só faz o fantasma crescer. É preciso falar, dar nome às coisas.

No Brasil, a gente não faz isso. Não damos nomes à ditadura, à perseguição política, à tortura. E se não damos nomes às coisas, a gente não existe. É a base da psicanálise: o que não se nomeia volta pior, o trauma retorna durante muitas gerações. Dar nome ao que aconteceu faz com que, de alguma forma, se interrompa esse mal e que a dor seja ressignificada.

O romance 'Vista Chinesa' é inspirado na história real de uma amiga de Tatiana - Divulgação - Divulgação
O romance é inspirado na história real de uma amiga de Tatiana
Imagem: Divulgação

E essa linguagem acabou sendo rica em detalhes que chegam a provocar até uma falta de ar no leitor. Você queria provocar uma identificação com aquele medo?

Antes de começar a escrever, a minha ideia era não descrever o que aconteceu, porque quando descrevemos há o risco de cair no sensacionalismo, de fazer uma superexposição, que acaba fazendo com que o leitor queira fechar o livro com aquela 'carne exposta'. E acho que isso causa repulsa em vez de aproximar o leitor. Minha ideia era fazer um texto com mais vazios, que chamasse pela imaginação. Mas nas entrevistas a Joana contou tudo com muitos detalhes e fiquei pensando.

Quatro anos depois ela ainda se lembrava de todos os detalhes. E os detalhes doem, foi aí que vi que não conseguiria fugir do relato do estupro. E esse foi o meu desafio literário, conseguir narrar com detalhes, sem causar aversão, sem escancarar.

Acredita que "Vista Chinesa" ajudará algumas vítimas a conseguir falar sem vergonha ou culpa sobre o que viveram?

Já recebi mensagens de algumas. Uma delas me contou que também foi estuprada na Vista Chinesa e que nunca conseguiu falar direito sobre essa dor nem na terapia. E aí me disse que não conseguiria ler o livro agora, mas era importante saber que ele existia, que a Joana conseguiu falar. E algumas disseram que depois da leitura achavam que também conseguiriam falar sobre isso.

Você também aborda a decadência do Rio nos últimos anos. Por que esse pano de fundo?

Em 2014, o Rio era o "lugar do futuro". Teve a Copa, ia ter Olimpíada, várias obras estavam acontecendo pela cidade, Eu já morava aqui em Lisboa e as pessoas me questionavam por que eu tinha saído de lá. E, de repente, aconteceu o estupro da Joana naquele momento. O Rio é isso também, vive prometendo um paraíso, mas tem esse inferno. Decidi que a história seria contada nesses anos depois do crime para também mostrar a decadência da cidade. Enquanto a personagem vai se reerguendo, ainda com aquela dor, aquela marca, a cidade vai só caindo ladeira abaixo. E o estupro acontece ali naquela mata, que tem algo de medo, de terror, mas que também sofre uma violência — na verdade, vem sofrendo desde 1500.

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