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Como nos EUA, ela viu o filho morrer asfixiado diante das câmeras

Pedro Henrique foi imobilizado e morto por um segurança de um supermercado no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
Pedro Henrique foi imobilizado e morto por um segurança de um supermercado no Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

06/06/2020 04h00

Era manhã de 14 de fevereiro de 2019 quando a esteticista Dinalva Oliveira assistiu a um segurança asfixiar seu filho até a morte, dentro de um supermercado, no Rio de Janeiro. Pedro Henrique Gonzaga, capixaba de 19 anos que tentava a carreira como MC em terras cariocas, estava desarmado e não tinha roubado nada. Ele precisava de ajuda após um aparente surto psicótico. A mãe conta que o filho andava agitado e já tinha consulta marcada numa clínica para tratamento de saúde mental e dependência química para tentar entender o que estava acontecendo.

A cena de Dinalva sentada ao lado do segurança Davi Ricardo Moreira Amâncio, pedindo que ele saísse de cima do filho, pois as mãos do jovem já estavam roxas, correu o país. Mas Dinalva só viu a imagem há alguns dias, após um policial branco asfixiar até a morte George Floyd, um americano negro de 46 anos, em Minneapolis, nos Estados Unidos.

É que a imagem do joelho do policial Derek Chauvin no pescoço de Floyd imediatamente fez muitos brasileiros se lembrarem do corpo imóvel de Pedro Henrique embaixo de Amâncio.

"Infelizmente, esse caso é muito idêntico ao que aconteceu com meu filho. As consequências são terríveis. Estou à base de remédio e calmante. Nessa semana, já vi a minha psiquiatra por causa dessa situação. A gente fica sem chão, vivendo uma situação surreal", diz Dinalva, 36, chorando ao telefone. Ela também é mãe de uma jovem de 19 anos.

Dinalva, porém, prefere não associar sua tragédia ao racismo escancarado que envolve a morte do americano e que levou a uma onda de protestos pelo mundo.

"Não posso afirmar que o segurança olhou para o meu filho e falou: 'Vou matar porque ele é negro. Sei que as pessoas estão fazendo essa ligação por causa do racismo. Respeito, mas não me envolvo, até porque não tenho essa estrutura."

Muito emocionada, ela relembra os detalhes daquele dia.

"Meu filho era muito carinhoso, extremamente alegre e brincalhão. O Pedro estava conversando normalmente, falando coisa boa. Ele tinha perguntado no balcão se vendiam chip para celular. E pediu para almoçar ali porque a comida era gostosa. Óbvio que, se eu adivinhasse que ele teria um surto, não o levaria ao mercado. Meu filho nunca deu sinal de surto.

Mas naquele dia ele teve um surto, como nunca antes. Ficou com os lábios brancos e correu. A impressão que dava era a de que ele estava tendo algum tipo de alucinação. Quando o segurança viu, imobilizou o Pedro.

Falei, desde o início, que meu filho estava indo para uma clínica. Eu tinha acabado de ligar para a psiquiatra. E achei que o segurança só ia ajudar a imobilizar o Pedro enquanto esperávamos a ambulância chegar. Mas parece que ele não acreditou no surto e imaginou que o meu filho fosse bandido. Também não parecia acreditar que eu fosse sua mãe.

Ele não tentou só imobilizar, ficou fazendo pressão para matar meu filho.

O rosto desse segurança era de ódio, de sede de matar. Eu assisti a ele assassinando meu filho com muito ódio e frieza. E, ao mesmo tempo, sendo tomado por uma ira sem nem mesmo pedir ajuda a alguém.

Não conheço a vida dele. Não posso julgá-lo, mas, naquele momento, ele expressava terror. E as pessoas que tocavam nele se sentiam intimidadas.

George Floyd trouxe história de volta

Quando tudo aconteceu, não vi reportagem nenhuma e fiquei à base de remédios. Só nesta semana é que comecei a ver tudo, ler matérias, comentários sobre aquele dia, por causa do que aconteceu nos Estados Unidos com o George Floyd. As pessoas começaram a me procurar porque logo se lembraram dele.

Li comentários do tipo: 'Por que as pessoas não fizeram nada?'. Mas tentaram! Tinha muita gente gritando, apelando. Mas o segurança expressava fúria, medo. E, mesmo que alguém tentasse, ele era forte, pesado e ainda fazia força. Para tirá-lo dali de cima do meu filho, tinha que juntar uns dez homens. Não culpo as pessoas porque também tentei. Ninguém ia conseguir.

Lembro que, quando levantei, eu olhei para o outro segurança que estava em pé, assistindo a tudo, e perguntei: 'Por que você deixou ele fazer isso?'. E também perguntei para o Davi: 'Por que você fez isso com meu filho?'.

Ele não teve uma piedade. Você vê TV e sabe que existem pessoas más, mas, quando vive isso, você vê a maldade ali materializada.

Enxergo pessoas como pessoas

Quero que o que aconteceu com Pedro faça a Justiça ver o quão grave foi esse caso e o quão importante é impedir que esse segurança faça isso de novo. E não quero que isso tudo incite as pessoas à violência.

Sou neta de italiano com índio, meu filho é descendente de negro, e toda vida enxerguei pessoas como pessoas, independentemente da cor. A vida está em primeiro lugar. Então, não posso afirmar que o segurança olhou para o meu filho e falou: 'Vou matar porque ele é negro'. A gente tem que amar o ser humano.

Sei que as pessoas estão fazendo essa ligação por causa do racismo. Respeito, mas não me envolvo. Até porque não tenho essa estrutura. Para mim, o amor é imparcial.

Fico aflita porque, a cada dia que passa, tudo fica pior. Mas tenho fé que, no futuro, teremos uma vida pacífica. Minha fé e a empatia das pessoas me sustentam. E o amor pelos meus filhos.

Quando perguntam quantos filhos eu tenho, respondo que são dois porque o Pedro não deixou de ser meu filho. Agora estou sem um pedaço de mim porque fica um buraco que ninguém tampa.

Eu vi a entrevista da empregada doméstica que foi passear com o cachorro da patroa e viu o filho morrer depois de deixá-lo sob os cuidados dela [o menino Miguel Otávio Santana da Silva, 5, caiu do nono andar de um prédio em Recife].

Quando olhei para essa mãe, me lembrei de mim mesma. Porque, na hora, a ficha não cai. E, quando começa a cair, aí vem o pânico, a depressão. São sintomas de quem acaba de chegar de uma guerra. Olhei para aquela mãe e falei: 'A ficha dela vai cair e ela vai sofrer mais'.

A dor de perder um filho é tão grande que o restante fica menor. Para quem está segurando esse peso, qualquer outra coisa a gente segura.

É uma agressão física que a gente sofre. São detalhes que quem olha uma mãe como essa dando entrevista não imagina. Mas, ainda assim, a gente vai sobrevivendo porque ninguém vive plenamente.

O supermercado pagou uma indenização, e acordamos segredo com relação ao valor. Mas fiquei satisfeita. O mais importante seria ter meu filho de volta. Isso nenhuma indenização ou Justiça humana fará.

Agora, a gente aguarda que essa pessoa seja julgada conforme a Justiça. E que ela não fique livre a ponto de se achar no direito de fazer isso com outra pessoa. Não sinto ódio nem vontade de vingança até porque meu filho não era assim. Mas quero que o culpado, dentro da Justiça, pague o que deve à sociedade".

Segurança irá a júri popular

O advogado de defesa do segurança Davi Ricardo Moreira Amâncio, 32, disse, à época do ocorrido, que seu cliente e as testemunhas ouvidas sustentam a versão de que Pedro Henrique teria empunhado uma arma e ameaçado atirar dentro do local.

Em julho do ano passado, a Justiça do Rio de Janeiro aceitou denúncia contra os vigilantes Davi Ricardo Moreira Amâncio e Edmilson Felix Pereira. Amâncio vai responder por ter imobilizado e estrangulado Pedro. Já Edmilson responderá por omissão, por não ter impedido a ação de Davi.

Os dois faziam parte do quadro de funcionários do Groupe Protection, responsável pela segurança do supermercado, mas o Grupo Pão de Açúcar, que controla o Extra, rescindiu o contrato com a prestadora de serviços após o ocorrido, e eles não mais voltaram ao local.

Davi foi solto depois de pagar fiança de R$ 10 mil. Inicialmente indiciado por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), ele responde por homicídio doloso (com intenção de matar).

Os dois irão a júri popular, sem data definida. Segundo o advogado da família de Pedro, Marcello Ramalho, o processo está em juízo de formação de culpa, quando as provas são produzidas.

Se forem condenados, ele explica, a pena mínima, para homicídio qualificado, seria de 12 anos.