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"Abusos na infância foram gatilho para minha compulsão alimentar"

Compulsão alimentar de fundo emocional: E. N. relata ter sido estuprada pelo padrasto e por amigos da mãe desde os 6 anos - Getty Images
Compulsão alimentar de fundo emocional: E. N. relata ter sido estuprada pelo padrasto e por amigos da mãe desde os 6 anos Imagem: Getty Images

Camila Brandalise

de Universa

22/11/2019 04h00

Foi ao assistir um programa de televisão sobre dietas, em 2014, que a fotógrafa mineira E. N., 40, conheceu o termo compulsão alimentar. Naquele momento, percebeu que podia sofrer do transtorno, caracterizado não apenas pela ingestão de grandes quantidades de comida mas também pela ligação com aspectos psicológicos e emocionais da vida de quem tem o problema.

O transtorno ganhou as manchetes recentemente depois que a atriz Cleo Pires revelou sofrer de compulsão alimentar. No começo de outubro, ela revelou ao "Fantástico" (Globo), que engordou 20kg por causa da compulsão. Em seu Instagram, ela desabafou: "Penso no tanto de meninas e mulheres que, assim como eu, sofrem com distúrbios alimentares e emocionais por conta desse padrão irresponsável, inalcançável e cruel", escreveu. Segundo a nutricionista Licia Davila, especialista em transtornos alimentares, não há dados suficientes na literatura científica que mostrem que o acometimento de transtorno de compulsão alimentar é maior em um determinado gênero. "Porém, a experiência clínica mostra que mulheres são a maioria", diz.

No caso de E., ela conta ter procurado ajuda com psicólogos e psiquiatras logo que descobriu que poderia ter a doença. Entendeu, então, que sua compulsão tem um gatilho emocional e é motivada, principalmente, pelo fato de ter sido abusada pelo padrasto dos 6 aos 13 anos. "Fico triste, é como uma recompensa. Como porque alivia." Até hoje, ela luta contra o transtorno. "Não tem nada a ver com força de vontade. Quem quer comer tudo o que tiver pela frente até vomitar?"

Em um dos piores episódios do transtorno, a fotógrafa estava em um bufê livre com o marido. Foi três vezes ao banheiro para vomitar e, depois de cada uma delas, voltava para comer mais. "Só parei quando minha garganta começou a sangrar."

Leia o relato:


"Se fico triste, eu como porque alivia a dor. Tristeza e ansiedade são os piores gatilhos. Quando vejo, estou na frente das panelas ou indo à padaria. Compro seis, oito pães e como de uma vez, sem dó. Como sem fome e até não caber mais comida dentro de mim.

Não tenho dúvida de que a compulsão é emocional. Não tive uma infância muito boa, passei por abusos sexuais, cometidos pelo meu padrasto e por amigos da minha mãe. Começou quando eu tinha seis anos. Tento não acionar essas lembranças. Sei que têm relação com a compulsão.

Tenho problemas no meu casamento, não sinto falta de sexo. Aí, vejo meu marido mal por isso. Fico mal também e tento aliviar, de novo, na comida. Mas ele me ajuda muito. É meu porto seguro. Quando tenho uma crise, ele me abraça, conversa comigo e me acalma.

Percebi que tinha o transtorno vendo um programa de TV em que um médico ajudava pessoas gordas a emagrecer, em 2014. Falaram da compulsão alimentar e me reconheci. Até então, achava normal comer o tanto que eu comia.

Logo depois fiz acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Também já fiz dieta e emagreci. Mas, logo, desanda tudo. Posso ter acabado de comer, mas, se tiver algum problema que eu não consiga resolver, eu como.

Dizer que só precisamos ter força de vontade para parar de comer é mentira. Não tem nada a ver. A compulsão é um transtorno. Quem quer comer igual a um boi? Quem quer comer até vomitar?

Um dos piores episódios que vivi foi em um restaurante com meu marido. Ia ao banheiro vomitar para poder comer mais. Fiz isso umas três vezes, até minha garganta sangrar.

Muitos profissionais não estão preparados para tratar o transtorno e enchem a gente de remédio. Isso não resolve o problema. Em um dos tratamentos que fiz, me entupiram de medicamentos e eu só dormia. Percebi que dormir não ia me ajudar. Uma vez, fui a um psicólogo que mandou eu ir à igreja. Disse que meu problema era causado por falta de Deus.

Faço parte de grupos sobre o assunto no Facebook que me ajudam muito. Quando estou nesses grupos, vejo que não estou sozinha. Um ajuda o outro porque passamos pelas mesmas coisas. Quem tem compulsão quer falar da dor que sente.

Hoje, sou iniciante na fotografia. Trabalho em eventos, casamento, aniversário. O que aparecer. Quando não tenho nada, chamo alguns amigos e fotografo de graça. Eu amo fotografar, me dá paz, então me ajuda muito com a compulsão. O importante, para mim, é manter a cabeça ocupada."