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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sem Tinder, só vida real: a história de um casal que poderia ter se amado

casal hetero amor beijo - Getty Images/iStockphoto
casal hetero amor beijo Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

11/12/2022 04h00

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O olhar dele poderia ter encontrado o dela, sentada no banco da frente na estação. De novo, e mais uma vez, como um esconde-esconde de olhos. Ele poderia ter sorrido; ela poderia ter abaixado a vista, envergonhada, e em seguida levantado de novo.

Ela poderia ter disfarçado procurando o trem que não chegava; ela poderia ter fingido não notar quando ele se levantou e veio em sua direção. Ele poderia ter perguntado o nome dela, ter se apresentado, pedido licença para se sentar no mesmo banco; ela poderia ter cedido espaço indo um pouco mais para o lado, mesmo que já houvesse espaço suficiente antes.

Ele poderia ter começado com perguntas banais, para onde ela estaria indo, onde ela trabalhava, com o quê; ela poderia ter respondido uma a uma, a conversa crescendo, eles também.

Eles entraram juntos no trem que agora chegou.

A conversa poderia ter seguido, surpreendente, fácil; eles não poderiam deixar de notar uma familiaridade incomum. Ele poderia ter roçado o braço dela, primeiro sem querer, depois não; ela poderia ter ficado aflita com a velocidade da viagem, querendo que se alongasse.

Ele poderia ter, de perto, sentido o que era o cheiro dela, e ficado com ele na memória pelas próximas horas ou dias.

Eles poderiam ter trocado telefones, redes sociais, planejado se ver depois; eles poderiam até ter se beijado bem rápido, bem de leve, quando chegou a hora dela descer.

Ela poderia ter desembarcado pensando naquele rapaz, surpresa com a mudança do rumo do dia; poderia ter sentido um medo retrógrado, e se ele só tivesse chegado para o próximo trem.

Ele seguiu no trem, o mesmo no qual ela esteve. Ela, no caminho para casa, poderia ter se perguntado como e onde começa o amor.

Ele poderia ter escrito para ela. Eles poderiam continuar se falando, atônitos com o rio de palavras de que não se sabiam capazes; poderiam ter combinado de se ver de novo e escolhido um lugar perto da estação.

O beijo poderia ter se repetido, ainda melhor porque bom duas vezes; poderia ter se intensificado, exigido espaço, bagunçado a noção do tempo. Uma urgência poderia ter se apossado deles —o cheiro— e eles poderiam ter se abraçado com mais vigor; poderiam ter querido invadir propriedades, se afastar do mundo, eles e o desejo deles.

Eles poderiam ter sentido que aquilo que viviam era só seu, mas também da humanidade toda.

Eles poderiam ter seguido, a cada dia um pouco mais juntos; poderiam ter se visto íntimos, abismados, apaixonados. Eles poderiam, de tempos em tempos, ter imaginado como seria a vida, caso não tivessem se encontrado na tarde longínqua na estação.

Mas estava cada um mirando a tela do seu celular, e seus olhares jamais chegaram a se cruzar.