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Natalia Timerman

OPINIÃO

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Relacionamento com homem 30 anos mais novo é mote de livro de Annie Ernaux

A escritora Annie Ernaux  - Ulf Andersen/Getty Images
A escritora Annie Ernaux Imagem: Ulf Andersen/Getty Images

Colunista de Universa

04/12/2022 04h00

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Uma mulher se relaciona com um homem 30 anos mais novo: esse é o mote de "O jovem", de Annie Ernaux, lançado em 2022 tanto na França quanto no Brasil —aqui pela editora Fósforo, coroando a celebração do prêmio Nobel e a passagem cativante da autora pela 20ª Flip.

Trata-se de um livro curtíssimo, mas denso, e difícil de classificar. As 37 páginas têm tamanho de conto, complexidade de romance e o caráter sabidamente autobiográfico da escrita de Ernaux. Caráter esse que também suscita questões, pois o prefixo "auto", longe de configurar uma escrita narcisista, trata, na verdade, de um eu que, no decorrer de sua obra, se ultrapassa ao se escrever —em "Os anos", Ernaux empreende uma autobiografia que prescinde da palavra "eu", propondo, mais que uma confissão, uma sociologia de si mesma, buscando experiências que digam respeito a um coletivo ainda que tenham se dado a ela individualmente.

"O jovem" parte do mesmo fundamento. A partir de uma história de amor bastante específica, a de uma mulher que já entrou na menopausa com um rapaz do qual ela foi professora, a sensibilidade de onde se estabelece a escrita de Ernaux torna-a de certa forma múltipla, quase universal —e por isso lhe concede a complexidade de um romance.

Ela não escreve apenas sua história, mas escreve sobre desejo, sobre o desejo de uma mulher madura, sobre o amor e principalmente sobre o tempo; escreve talvez sobre a relação entre amor e tempo, inconciliáveis, e no entanto imprescindíveis um para o outro: ainda que o amor se dê no tempo, a experiência amorosa é a ultrapassagem do próprio tempo, daí que todo amor é impossível. "Ele tornava o momento presente tão mais intenso e pungente que o vivíamos como se fosse passado."

Já na epígrafe, nos deparamos com o cerne de sua escrita: "Se não escrevo as coisas, elas não encontram seu termo, são apenas vividas."

Mas Annie Ernaux não quer celebrar a própria vida e não chega nem perto de enaltecer sua trajetória. Ela não escreve porque viveu, mas, na direção oposta, viveu para escrever. "As coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros", ela escreve em "O acontecimento".

O que Annie Ernaux faz é algo novo. Não se trata de ficção, segundo ela mesma, portanto não se trata de uma escrita que adira ao conceito fugidio de autoficção; trata-se de um fazer literário que se coloca como uma das possibilidades de escrita de si, no âmbito da não-ficção. Não à toa foi a partir de sua obra, junto da de Claude Simon e Pierre Michon, que o conceito de narrativa de filiação foi criado por Dominique Viart, ainda que nem todos os seus livros se encaixem na ideia (a literatura vem sempre antes da crítica, e continua sempre a ultrapassá-la).

Autobiografia: um gênero menor?

A escrita autobiográfica foi considerada muitas vezes, ao longo da história da literatura, um gênero menor. O crítico literário belga Paul de Man, em "Autobiografia como des-figuração", vai além, e discute não só seu valor, mas a própria legitimidade da autobiografia como gênero. "Todo livro com uma capa inteligível é, até certo ponto, autobiográfico. Mas, assim como parecemos afirmar que todos os textos são autobiográficos, devemos dizer que, do mesmo modo, nenhum deles o é ou pode ser."

Como argumento que diminuiria a autobiografia, Man levanta a possibilidade de o escritor não criar sua autobiografia, mas ser criado por ela: "Assumimos que a vida produz a autobiografia como um ato produz suas consequências, mas não podemos sugerir, com igual justiça, que o projeto autobiográfico pode ele próprio produzir e determinar a vida?"

Sim, poderia dizer Annie Ernaux. E não, sua escrita não seria diminuída por isso —que o diga o prêmio Nobel enfim concedido a uma mulher que assume escrever literatura a partir de si mesma. "O principal motivo para eu querer seguir adiante com essa história era que, de certo modo, ela já tinha acontecido, e meu papel ali era o de uma personagem de ficção". A escrita de Annie Ernaux não é ficcional; é sua vida que o é. Uma vida que ela mesma pode inventar ao viver, e à qual é fiel ao escrever.

Haja ficção, ora, para inventar a vida de uma mulher que pode autobiograficamente, verdadeiramente, dizer: "Era outono, o último do século 20. Percebi que estava feliz por poder entrar sozinha e livre no terceiro milênio".