Cristina Fibe

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Opinião

Nem na tragédia do RS a violência contra crianças e mulheres tem trégua

Hoje eu queria falar dos espartilhos do Met Gala. Da volta desse acessório antiquado, que não deixa respirar. Da ode à supermagreza. Do look mais aclamado da festa, que era feito de areia e imobilizava a mulher. Ou das críticas à liberdade sexual da Madonna, que luta há 40 anos pelo direito aos nossos corpos. São lados de um mesmo prisma.

Mas essas discussões ficam em suspenso diante da catástrofe do Rio Grande do Sul.

O cenário de vulnerabilidade extrema, em que é preciso procurar remédio, alimento, água, roupa, teto — enquanto ainda se enterram os mortos —, é também um contexto em que crianças e mulheres ficam em situação de maior risco.

Segundo a Folha de S.Paulo, entidades gaúchas levaram à ministra Cida Gonçalves relatos de abusos nos abrigos que recebem afetados pelas enchentes. Elas dizem que não há sequer onde fazer as denúncias, e pedem dormitórios e banheiros exclusivos.

A ministra prometeu uma visita ao estado e a criação de um protocolo com recorte de gênero, ou seja, que leve em conta as necessidades de meninas e mulheres no meio dessa tragédia.

Além do medo e da falta de segurança, de não poder trancar a porta, de estar tudo escuro, de não ter pra onde correr, há ainda o pavor de se agravar a violência contínua dentro das próprias famílias.

Em entrevista a Flávia Oliveira, na Globonews, o comandante-geral da Brigada Militar do Rio Grande do Sul afirmou que cinco suspeitos já foram presos por abuso e estupro nos abrigos. Ele disse que esses crimes foram cometidos por familiares ou conhecidos e muito provavelmente já ocorriam no seio familiar.

Enquanto isso, uma mãe abrigada em Canoas pediu ajuda nas redes sociais depois de flagrar um homem se masturbando diante dela e de suas crianças. Eu sei que parece óbvio o que eu vou dizer: isso é crime. E não só o de importunação sexual, que dá prisão de um a cinco anos, mas o de fazer isso na presença de menores de idade, o que são outros dois a quatro anos.

Caso ainda tenha gente que não saiba, é bom espalhar: no Brasil, é crime a "satisfação de lascívia na presença de criança ou adolescente". Todo ato libidinoso praticado no ambiente em que estão menores de 14 anos, de forma consciente e intencional, dá cadeia.

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No caso do Sul, tem um agravante de crueldade: a vulnerabilidade de quem está ali. Nem adultas estão, em meio à calamidade, em plena condição de oferecer resistência. Não tem pra onde fugir, e as suas vidas estão sob risco o tempo inteiro. Sem falar nas crianças que estão órfãs ou perdidas de suas famílias.

É preciso que se dê uma resposta imediata a esses abusos, reforçando a segurança e criando meios pra denunciar. Numa segunda etapa, igualmente urgente, temos que voltar os olhos de uma vez por todas a essa violência que nunca tem trégua. É uma desumanidade naturalizada. No caos ou na normalidade.

Pode ser na guerra, no parto, no hospital, na prisão, no parque, na escola, na igreja, em casa ou no caixão. Não tem lugar em que uma criança ou uma mulher esteja realmente protegida da violência sexual. Eu queria explicar o que a volta do espartilho e a objetificação do corpo feminino têm a ver com isso, eu queria falar do Met Gala. Mas não dá tempo. A gente precisa de trégua.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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