Topo

Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ressaca eleitoral na terapia: o antipetismo como fobia

iStock
Imagem: iStock

Colunista de Universa

07/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Era manhã de segunda quando uma paciente que chamarei de Nadia me pediu que adiantasse o horário de sua sessão. Não haveria novidade alguma nisso, segunda costuma ser o dia em que mais recebo mensagens de pacientes, não fosse o fato de que eu também estava com dificuldade de enfrentar o dia pelo mesmo motivo que ela: o resultado das eleições.

Que a angústia dos pacientes se assemelhasse à que eu mesma sentia foi um enorme exercício ao longo de toda a pandemia. As incertezas quanto à doença, o terror pela perda do mundo familiar, o desespero diante do escárnio do governo na lida com o coronavírus me fizeram aprender mais uma vez que cuidar da dor do outro é um dos jeitos de lidar com a minha.

Como muitos dos eleitores de Lula, eu estava confiante de que seria possível ganharmos no primeiro turno, ou que pelo menos fosse por pouco caso não desse, já que era isso o que as pesquisas mostravam. Foi um balde de água tão gelada quanto os dias dessa primavera estranha perceber o que, sem a euforia de sábado, agora me parece óbvio: a extrema direita está instalada no legislativo, nas ruas, no Brasil, e não será simplesmente eliminada de uma hora para outra, como se eleições equivalessem a um passe de mágica.

Consegui adiantar a sessão de Nadia para o dia seguinte. Ainda que a ressaca eleitoral se assemelhasse, nosso domingo havia sido bem diferente. Enquanto eu passei a manhã e a tarde cheia de esperança (para confirmar à noite que toda esperança tem algo de ingênuo), ela logo cedo percebeu que as coisas não iam tão bem. Seus pais, apoiadores de Bolsonaro, tinham dito ao longo da campanha que não se dariam ao trabalho de sair de casa para votar; ela ainda estava na cama quando recebeu do pai, no grupo da família, uma foto do comprovante de voto. A mãe também foi pelo mesmo caminho, motivada pelo medo da possibilidade de Lula ganhar no primeiro turno que as pesquisas apontavam.

Dois votos, o do pai e o da mãe de Nadia, são estatisticamente insignificantes, mas talvez possam ajudar a levantar hipóteses para a distância entre as últimas pesquisas de intenção de voto e o resultado do primeiro turno. As pesquisas não estavam erradas, mas se é possível expandir para mais gente o que levou os pais de Nadia saírem de casa para votar, elas mesmas, as próprias pesquisas, determinaram a mudança de resultado que as contradisse.

O diálogo que se seguiu na casa de Nadia, no almoço de domingo, também pode ajudar a entender algumas coisas. Chegaram para almoçar os primos e a tia. Não o tio: pois o tio de Nádia morreu de covid, na mesma semana em que sua esposa ficou dias internada numa cadeira no PS por falta de vaga. Esses parentes de minha paciente, que perderam o pai e o marido na pandemia, votaram no responsável por 400 mil mortes evitáveis. Votaram em Bolsonaro sem titubear. Imunes não ao vírus, mas à associação de sua dor a um dos maiores responsáveis por ela, escapando ao apelo de quem acha que associar os absurdos do governo à sua campanha desviará votos do próprio absurdo.

Nadia se mostra indignada durante a sessão. "Meu primo ficou meses sem comer carne porque não tinha dinheiro para comprar; meu primo não conseguia encher o tanque do carro de gasolina. Meu primo perdeu o pai para o manejo desastroso do coronavírus e ainda assim votou em Bolsonaro."

Enquanto a escuto, fica nítido que a opção de voto de sua família não é uma escolha racional. Não é possível diagnosticar alguém que eu não atendi e nem extrapolar casos ou patologias individuais para o coletivo, mas, como psiquiatra, não posso deixar de pensar que há algo de fóbico, mais que de delirante, no voto de sua família. Fobia: aversão infundada, medo irracional, como o que faz uma pessoa subir dez lances de escada pelo receio de entrar em um elevador. Fobia provavelmente instaurada pelo discurso reiterado da imprensa por anos a fio e, mais que tudo, pelas fake news entregues pelos algoritmos e grupos de WhatsApp.

O inimigo não são os outros: o inimigo é o medo que eles sentem, ainda que e porque irracional. O inimigo é também o comportamento de manada ensejado pela internet, monstro que aguça o monstro do que é humano. E ambos, o medo e a manada, são fomentados pelo inimigo maior, os interesses individuais de quem está no poder, que queimam com fogo bastante real o nosso futuro.

Enquanto a mãe de Nadia, num gesto carinhoso, colocava na mesa sua sobremesa preferida, ela entendeu que o convívio com a família é uma casca, uma camada frágil demais dentro da qual existe o magma da inconciliação, dos valores incompatíveis, da estranheza máxima. Temos pouco tempo para entender o que fazer com essa substância incandescente, furiosa e mortífera que há no seio da família brasileira.