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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'A Mulher da Casa Abandonada': por que o podcast suscita tantas polêmicas?

A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast "A Mulher da Casa Abandonada" - Reinaldo Canato/UOL
A casa da rua Piauí 1111, que virou ponto turístico com o sucesso do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Colunista de Universa

08/07/2022 04h00

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'A Mulher da Casa Abandonada': podcast do jornalista Chico Felitti para a Folha de S. Paulo, chegou como uma avalanche. Num intervalo de poucas horas, ouvi falar dele por diversas pessoas em contextos diferentes. Eu, que não sou muito dada a podcasts, fui logo escutar.

Poderia ser apenas mais um podcast, mas a reação a ele também chama a atenção. Primeiro, percebo minha própria curiosidade de buscar fotos da casa e da mulher, como se tudo aquilo que ouvi exigisse provas, ou como se fosse um filme, uma ficção tão improvável que pedisse confirmações, ilustrações que lhe dessem concretude. Mas algo me diz que não é apenas isso.

Grupos de Telegram, páginas em redes sociais — que, em poucos dias, chegam a muitos milhares de seguidores —, um frenesi constante em torno do assunto, cujo ápice é o amontoado de gente na frente da casa, que se tornou algo como um ponto de peregrinação. De onde isso viria?

O podcast é uma narrativa instigante, bem tensionada, de uma investigação jornalística sobre uma história específica que desemboca em outra, muito maior, muito mais grave. O que parecia ser uma trama de mistério em torno de uma mulher excêntrica, que vivia numa mansão em ruínas numa das ruas de um bairro rico de São Paulo, volta-se para o crime cometido por Margarida Bonetti, o de submeter uma mulher à condição análoga a da escravidão, crime que, da parte dela, nunca chegou a ser julgado. Ela fugiu dos Estados Unidos, onde o absurdo se deu por quase vinte anos; René Bonetti, seu marido, foi condenado pela justiça estadunidense e cumpriu a pena estabelecida.

Algumas discussões em torno do caso, que pode dar ensejo a debates importantes, acabam resvalando, por meio da dinâmica das redes em que se dão, na já costumeira disputa de versões. Alguns se posicionam contra o podcast, argumentando que ele transformaria em entretenimento o fato de uma mulher ter sido escravizada por tantos anos em pleno século 20; outros, talvez em maior número, elogiam a pesquisa e a narrativa de Chico Felitti e acreditam que esse trabalho traga à luz a situação crítica de inúmeras trabalhadoras domésticas no Brasil, o que poderia contribuir para transformá-la.

Concordo com o segundo grupo, ainda que com algumas ressalvas. No primeiro episódio, escutamos a mulher vociferar em defesa de uma árvore prestes a ser derrubada com um discurso aparentemente delirante, persecutório, talvez de natureza psicótica.

O podcast não é nem deveria ser uma anamnese psiquiátrica, e não dá elementos suficientes para fazer qualquer diagnóstico, portanto não é possível saber se há de fato um transtorno mental a ser considerado e, em caso positivo, se esse transtorno viria de antes ou de depois da prática dos crimes. Há quem diga até que se trata de fingimento, o que me parece pouco provável, tomando como referência a forma extremamente precária com que a mulher vivia e outros elementos descritos por Felitti e por alguns de seus entrevistados no podcast.

Sei que a aparição de Margarida Bonetti na abertura tem um papel narrativo, o de aguçar a curiosidade de quem escuta, mas que isso seja feito às custas de alguém com possíveis sintomas psicóticos me causa certo incômodo, como psiquiatra e como pessoa.

Crime e loucura são temas distintos, e se estamos falando de direitos humanos, é importante que se apliquem a todas as pessoas. Infelizmente, situações como as da mulher escravizada que foi vítima do casal Bonetti continuam sendo perpetradas Brasil afora por pessoas sem diagnóstico psiquiátrico algum.

Esses crimes foram e são cometidos por pessoas que fazem parte de uma classe privilegiada, conservadora e racista, e não porque uma delas possivelmente apresente sintomas psicóticos. Não podemos esquecer que ninguém, nem mesmo uma pessoa capaz de atitudes monstruosas, é uma coisa só, nem mesmo quando personalizamos um mal tão antigo e sistêmico.

Em um dos primeiros episódios, uma vizinha relata que primeiro enxergava a mulher da casa deteriorada com pena, como alguém vulnerável e desamparada, que estivesse precisando de ajuda, opinião que se inverteu radicalmente quando soube que Margarida Bonetti era foragida da justiça e tinha sido acusada de um crime abominável.

Embora compreenda e compartilhe dessa indignação, também acredito, como psiquiatra com anos de experiência de trabalho em um hospital penitenciário, que as pessoas não se resumem a seus crimes, por mais bárbaros que tenham sido.

Criminosos devem ser responsabilizados por seus atos, disso não há dúvidas, mas merecem ser tratados com dignidade humana. Justiça é diferente de vingança, ou pelo menos deveria ser. Se estamos falando de direitos humanos, devemos assegurá-los a todas as pessoas, indiscriminadamente. Ainda que possa ser algo indigesto em casos como esse.

O aspecto especificamente racial da questão, indissociável da discussão em torno da escravidão no Brasil, também se ramificou nas redes. A escritora Eliana Alves Cruz afirmou no Twitter que não ouvirá "um podcast sobre uma velha condenada nos EUA por escravizar uma mulher, mas vive soltinha num casarão horroroso da nossa horrorosa elite." Que as mulheres negras sejam retratadas jornalística ou ficcionalmente tantas vezes no lugar de empregadas domésticas ou em posições subalternas e, aqui, pior, no lugar de escravizadas, é uma outra forma de aprisionamento, o aprisionamento de nosso imaginário.

Eliana Alves Cruz continua: "Minhas histórias libertam. Esta aprisiona." É um contraponto a se pensar. No entanto, sabemos que a vítima do casal Bonetti infelizmente não é a única, e o podcast segue debatendo criticamente os resquícios da escravidão, que continuam assolando nosso país nos dias atuais.

Talvez ambas abordagens sejam necessárias, a da pesquisa histórica e do jornalismo investigativo de Chico Felitti, que apontam para o nosso passado e para o fato de que não, ele ainda não passou, e a de Eliana Alves Cruz, que aponta para o presente e o futuro que precisamos construir, para a necessidade de reconhecer e criar outras possibilidades de narrativa, de representação — e de vida — para as mulheres negras e, por consequência, para o Brasil.

Nesse contexto de debates, por que, afinal de contas, a própria casa se tornou objeto de curiosidade, destino de peregrinação?

No belíssimo ensaio "O narrador", Walter Benjamin escreve que, já no início do século 20, a arte de narrar estaria em vias de extinção. "É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências". Mais adiante, ele afirma que "nada do que acontece é favorável à narrativa, e quase tudo beneficia a informação", que só teria valor no momento em que é nova.

Chico Felitti, em "A Mulher da Casa Abandonada", porta-se como um verdadeiro narrador, alguém cuja voz nos leva longe (embora também para perto) e que nos faz esquecer de nós mesmos ao ouvi-lo. No entanto, despidos da capacidade de experienciar, nós, seus ouvintes, representados pelos que chegam a ir até a casa, talvez o escutemos como se ele nos oferecesse apenas informações objetivas.

Nós, os pós-modernos, constantemente conectados numa rede profusa de interação incessante e superficial, estamos órfãos de histórias e de experiências coletivas. A idolatria é sintoma disso; nesse caso, idolatria tanto pelo criador do podcast quanto pela mulher que cometeu os crimes (pois a idolatria também pode assumir a forma inversa, do ódio). Ou mesmo pela casa, objeto abandonado que espelha nosso próprio abandono.