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Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'A Mulher da Casa Abandonada' serve pra pensar quanto escravagista você é

Colunista de Universa

06/07/2022 12h08

O podcast "A Mulher da Casa Abandonada", da Folha de São Paulo, é a mania do momento. E com motivo. A história, contada pelo jornalista Chico Felitti, é uma reportagem importante narrada de um jeito viciante.

Se você ainda não sabe, o podcast conta a história de Margarida Bonetti, uma mulher misteriosa que morava em um casarão abandonado no bairro de Higienópolis, em São Paulo, mas que, na verdade, como descobre Felitti, é uma mulher procurada pelo FBI e indiciada pela justiça americana por ter mantido uma mulher trabalhando em condições análogas à escravidão em sua casa.

Junto com o então marido, René Bonetti, ela levou para os Estados Unidos, no fim dos anos 70, para onde o casal se mudou, uma empregada doméstica que teria "ganho de presente de casamento". Sim, como na época da escravidão, quando pessoas eram tratadas como bens.

A mulher, que prefere não ser identificada, passou mais de 20 anos sendo escrava do casal passando fome, sendo exposta a todos os tipos de maus tratos. Ou seja, "a mulher da casa abandonada" é uma escravagista, uma criminosa.

E, pior, esse crime é comum no Brasil. Vez ou outra ouvimos falar de alguma mulher foi encontrada em situação de escravidão. Em junho, uma mulher que era mantida como escrava há 43 anos foi resgatada de uma casa em Recife. Terrível.

No episódio da semana do podcast, lançado na quarta-feira (6), é narrado o caso de Madalena Gordiano, que foi mantida como escrava por várias gerações pela família Milagres Rigueira, de Patos de Minas. O último homem a escravizar Madalena era Dalton César Milagres Rigueira, um professor universitário, só para deixar claro que ser escravocrata e criminoso não tem a ver com formação acadêmica ou profissão.

Quando ouvimos o podcast (se você não ouviu, ouça) ficamos chocados com a crueldade dos patrões. Mas, epa, será que a gente não é escravocrata também? Ok, não somos todos escravocratas criminosos como Margarida Bonetti e a família Milagres Rigueira. Mas, se esse tipo de crime ainda acontece no Brasil, é porque o país ainda é escravocrata.

Se você é branco e de classe média para cima, já deve ter se acostumado com coisas que não deveriam acontecer em um país civilizado, onde todos têm tratamento igual, como, por exemplo: lidar com o seu próprio lixo. Conversando com a amiga e editora Bárbara dos Anjos Lima, lembramos que em muitos prédios de classe média em São Paulo um porteiro bate na porta para retirar o lixo da sua casa e levar para a lixeira do prédio e depois levar para o caminhão do lixo. Sim, você tem uma pessoa para carregar seu lixo. É ou não escravocrata uma coisa dessas? Será que você não pode cuidar do seu próprio lixo?

Os exemplos são tantos que não vão caber em um texto. Mas é normal que, por exemplo, quando a gente vai a uma praia do Brasil, logo apareça "um menino" (que pode ser uma criança mesmo) e pergunte: "quer barraca?" "Quer cadeira?" Essas pessoas vão carregar a barraca para você, montar e ainda trazer seus drinks. Também é comum que alguém "carregue" as compras do supermercado para você para o seu carro.

As classes média e a alta brasileira são viciadas em serem servidas.

Tudo fica mais complicado no caso das empregadas domésticas. O Brasil é o país do mundo com maior número desse tipo de profissional. Sendo que 92% são mulheres e 65% são negras. Herança da escravidão.

Sim, muitas mulheres precisam de rede de apoio para cuidar dos filhos, já que trabalham o dia todo e no Brasil não existem creches acessíveis que durem o dia todo. E, claro, cuidar das crianças ainda é, na maioria dos casos, responsabilidades das mulheres. Mas dá para fazer isso com respeito, tratando essa pessoa como uma profissional, que é o que ela é.

Vou ser sincera. Já vi conhecidas confessarem que obrigavam a cozinheira a "usar uma touca" enquanto cozinhavam, para que "não caísse cabelo na comida". Mas essa conhecida que me disse isso cozinhava de touca? Claro que não.

Também já vi gente descolada, que se acha antirracista, com empregada uniformizada dentro de casa, vestidas de branco. Lembro de um "intelectual" que disse em uma reunião de trabalho que só ia à praia com as filhas gêmeas se a babá fosse junto, para "brincar com elas".

Não dá para achar esse tipo de coisa normal. Não é possível que a gente não consiga olhar esse tipo de situação com certa distância e perceber que mesmo você, que se considera antirracista, que está chocada com as histórias horríveis de "A Mulher da Casa Abandonada", também tem atitudes escravocratas.

Dói ouvir, dói admitir. Mas se a gente não enxergar isso e começar a mudar nossas atitudes, novas Margaridas e Madalenas podem surgir.

Não, a culpa não é só dos escravocratas criminosos, mas da sociedade toda. E fazemos parte dela.