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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O ghosting real que virou livro de ficção: o que é verdade em 'Copo Vazio'

"Copo vazio", nova obra de Natalia Timerman - Divulgação
"Copo vazio", nova obra de Natalia Timerman Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

01/07/2022 04h00

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Já não é segredo: sofri um ghosting. Na verdade, só fui conhecer esse outro nome para o perdido que levei há quase uma década depois de muito tempo, quando já havia escrito "Copo Vazio", um livro de ficção que tinha algo de muito real, pois falava daquela dor.

Fui tomar um café com minha amiga Mariana Kühl Leme que havia lido o original e ela me contou que era um comportamento comum, objeto de estudo, tema de matéria de revista, esse fenômeno de desaparecer sem dar explicações no começo ou meio de um relacionamento. Foi uma surpresa, e continuou sendo quando meu livro começou a ser conhecido como "um livro sobre ghosting".

A princípio, o rótulo me incomodou: eu havia escrito um livro de literatura, não sobre um comportamento específico, era uma narrativa, não mais a minha, a de Mirela, e me parecia que, posta a alcunha, todo o trabalho de linguagem iria por água abaixo, e a obra perderia seu valor literário se passasse a ser lida sempre do mesmo modo.

Já é quase um clichê dizer que um livro não pertence mais a sua autora depois de escrito, mas os clichês não deixam de guardar alguma verdade. Entendi aos poucos que sim, eu havia escrito sobre algo que não era só meu, e o fato de as pessoas se identificarem com o sofrimento de Mirela não diminuía o valor do livro, pelo contrário.

Esse é um dos papéis da literatura, afinal, se é que a literatura tem algum papel: organizar em palavras o que na vida é puro caos, massa informe de angústia. E se a literatura não serve para aplacar angústia alguma, pelo menos a pode nomear, e ela então pode passar a ter um lugar.

A trajetória de "Copo Vazio" também fora das páginas me causou tormentos. Bem, para começar, partiu de um, de uma dor que me pareceu desproporcional e que eu quis, então, escrever. Lembro do instante em que surgiu o primeiro esboço do livro: eu estava sentada em uma das carteiras da sala do Instituto Vera Cruz, onde fazia uma formação de escritores, e precisava de um projeto, que eu queria que fosse um romance.

Comecei a anotar num caderno nomes de personagens, ideias, o núcleo em torno do qual eu queria que a história girasse. O nome inicial de Mirela era Ella, porque me parecia que havia algo especificamente feminino no sofrimento que eu ia dizer, nome que depois caiu porque me pareceu ruim.

"Copo Vazio" é um livro de ficção, sobre uma personagem que não existe. Eu acho graça que já tenha sido chamada de Mirela algumas vezes, em debates, lives, conversas sobre o livro; acho graça também que o que eu inicialmente quis esconder, que havia de fato levado um perdido, tenha saído em manchetes através da palavra autobiográfica.

Sei que há um apelo para isso, e sei que em tempos de redes sociais há uma espécie de inversão: uma demanda incessante pela intimidade de um eu (o perfil) que, no entanto, de tanto se mostrar, se transforma em personagem de si mesmo, operacionalizando a troca entre o que é ficção e o que é real.

Sei que essa demanda chega à literatura e à arte, na procura pelo que é "baseado em fatos reais". Mas o que não é, de alguma forma, baseado em fatos reais? Quando é que uma escritora não está falando de si mesma, ainda que invente palavra por palavra, gesto por gesto de sua personagem? Li na tese de um amigo: até o estilo é autobiográfico.

Outra dos incômodos que perpassou a trajetória do livro: as recusas. "Copo Vazio" foi recusado duas vezes antes de ser aceito pela editora Todavia (que o havia, inclusive, recusado uma dessas vezes).

E depois a insegurança em publicar um livro sobre uma mulher que sofre por amor quando estamos lutando por outras coisas muito além do amor, ainda que eu saiba que a literatura é o lugar da contradição, e que há coisas, como a nossa precariedade enquanto seres amantes, que não mudam nunca. Isso vale para mulheres e homens.

E, bem, Pedro. Como ele reagiria ao livro? Esse homem que um dia sumiu e que, na vida, não se chama Pedro; esse homem de cujas características me servi para criar um personagem. Livro pronto, prestes a ser publicado, escrevi para ele por e-mail, dizendo que havia feito um livro cuja semente havia sido seu sumiço. Eu tinha medo de machucá-lo; também tinha medo de que ele me machucasse.

Sua resposta: que se alegrava pelo livro, que adoraria estar no lançamento, e que eu tinha carta branca para escrever o que quisesse, escrevê-lo como eu quisesse.

Enviei um exemplar a ele, que ele leu comentado alguns trechos comigo, e o curioso é que ele considerou "relatos quase jornalísticos" capítulos que eu havia inventado completamente. O principal empecilho para a nitidez da fronteira entre o real e a ficção é, afinal de contas, a imprecisão disso que chamamos memória.

A leitura de "Pedro" de Copo Vazio foi, de certa forma, reparadora. Ele disse que o livro o fez abrir um quarto escuro, um cômodo há muito trancado, que de repente estava ali, de luz acesa, e foi um alívio saber que o quarto existia também para ele, que a curta história que tivemos não havia sido apenas uma invenção minha, ainda que eu saiba que até as relações amorosas compartilhadas até o fim têm sempre algo de inventado.

"Pedro" me escreveu algumas vezes contando que amigos o identificaram no livro, e que foram avisá-lo, 'ei, cara, preciso te dizer uma coisa, li um livro e o personagem retratado só pode ser você'. Ao que ele sempre respondia: sim, eu sei, e desejo sucesso para a autora.

Muito obrigada, "Pedro", pelos votos de sucesso, e por ter voltado à minha vida na forma de amigo.

Mas pelo que mais te agradeço, pelo que te agradeço infinitamente, é por você ter, um dia, sumido.