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Luciana Bugni

Letícia Spiller e Melhem: homens que parecem legais podem ser assediadores

Leticia Spiller fala sobre Marcius Melhem no Programa Reclame - Reprodução/Instagram
Leticia Spiller fala sobre Marcius Melhem no Programa Reclame Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

10/12/2020 04h00

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Circulou na internet essa semana um meme que dizia quantas mulheres têm sua palavra contestada em cada caso de estupro, assédio ou abuso. Os homens mencionados, todos famosos, tinham em comum o grande número de vítimas que resolveu denunciar para que finalmente a opinião pública pensasse que eles estavam falando a verdade. A situação é triste. Na teoria, basta uma vitima fazer a acusação para que o homem seja investigado. A prática é um pouco diferente e a mulher violentada sempre sofre outras violências tentando provar que está sendo honesta.

Isso acontece porque geralmente abusadores, assediadores e estupradores são caras legais. Não de verdade, claro, mas eles parecem ser muito legais. E justamente por isso que eles chegam até onde chegam: eles são o brother firmeza de quem a maioria das pessoas gosta. Eles são o cara de coração bom que Letícia Spiller mencionou em uma live, quando perguntada sobre o caso de Marcius Melhem, acusado de assédio dentro da Globo. Eles são inteligentes, bonitos, encantadores. E assediadores, abusadores, estupradores. Pois é.

Epa, coração bom?

"Conheci o Marcius no Tablado (escola de teatro do Rio) e ele nunca me pareceu que faria algo tão agressivo assim. É duro receber uma notícia dessa de uma pessoa tão querida de bom coração", disse Letícia e foi extremamente criticada na internet. É complicado mesmo. Quando a gente acha que conhece alguém que é gentil, agradável, vive sorrindo, parece difícil acreditar que ele aproveite oportunidades em que está sozinho com outras moças para tirar o pênis para fora da calça e insinuá-lo para quem não está interessado em ver. Se as coisas são como dizem as acuações publicadas na revista Piauí na sexta (4), não há bom coração que resista.

Ser um bom menino, um cara legal ou um grande homem é uma desculpa comum para quem não quer ver que aquela pessoa querida tem comportamentos criminosos. Aconteceu em 2019, nos EUA: um garoto filmou-se estuprando uma garota e mandou para os amigos com a mensagem "quando sua primeira vez é um estupro". Existiam vídeos, lesões e denúncia. Mas o juiz entendeu que ele era de boa família, estava prestes a entrar na faculdade e uma pena poderia acabar com sua vida. Com sua vida, não com a vida da menina violentada. Era ele que era de boa família.

O mesmo vale para os inúmeros casos de estupro em Missoula, nos EUA (retratados pelo escritor John Krakauer em seu livro reportagem que leva o nome da cidade, que vira e mexe eu indico aqui). Os estupradores eram os amigos de infância. Os queridinhos da família. Os ídolos da cidade por serem os atletas que trazem títulos. E estupradores, abusadores, assediadores? Sim, é possível.

Letícia Spiller busca uma palavra para definir Melhem e o apresentador da live sugere mártir. Ela aceita. Seria o cara que foi acusado de inúmeros assédios por anos, o mártir da situação? Não, esse é um uso equivocado da língua portuguesa. Mártir, nesse caso, seria Dani Calabresa, que sofreu, que tinha tudo a perder e que viu uma carreira em ascensão agora ligada ao rótulo de assediada. Marcius, nesse contexto, se condenado, é apenas o vilão que parecia ter bom coração.

Se os assediadores tivessem as caras de mau dos vilões dos filmes, eles não fariam tantas vítimas. De ameaças visíveis, a gente corre. A gente só fica quando o papo é bom, quando o sorriso é amplo, quando o coração parece ser grande e justo.

É difícil mesmo acreditar. A própria vítima pode demorar muito para perceber que está sendo abusada e mais tempo ainda para reunir forças e denunciar. Muitas carregam o trauma em silêncio para sempre. A gente não pode duvidar delas porque demoraram para falar no assunto. A gente tem é que acreditar, para a próxima denunciar mais rápido, para o cara fazer menos vítimas.

A certeza da impunidade deixou esses homens com cara de legal agirem, empilhando vítimas como no meme que está aí pela internet. Nosso papel, como mulheres e como cidadãs, é ouvir as histórias delas sem julgamentos, por mais que o acusado seja alguém querido. Duríssimo, mas necessário para que as próximas gerações de caras legais entenda o que é certo e o que é errado e tenham bom coração de verdade.

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