Luciana Bugni

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Opinião

Harvey: condenação por estupro anulada e importância de seguir denunciando

Cresci em uma educação machista em que a a culpabilização de estupros e assédios sempre cabia às vítimas. Era um festival de "estava pedindo" (pelas roupas que usavam), "estava pensando o quê" (pelas ruas em que andavam) e "estava querendo" (pela hora em que estavam no bar e pela quantidade de bebida ingerida).

Já disse aqui publicamente e volto a dizer em todas as oportunidades que puder: não sei contar a quantidade de vezes em que fui cúmplice de agressões sexuais que, à época, tinham esses outros nomes eufemistas.

E também fui vítima — mas esse sei contar porque quando dói na gente é outra dor. Digo isso porque acredito que meu alcance pode mobilizar mulheres que continuam recolhidas em suas dores a acreditarem em uma máxima que considero importantíssima para a cura de vítimas sexuais: não é sua culpa.

E, quando acontece algo horrível, é importante haver um culpado. Se não é você, sua roupa, suas doses, a madrugada, saiba que o culpado é o violentador.

Talvez eu só escreva isso com essa liberdade e sem ficar ruborizada hoje porque em 2020 um grupo enorme de mulheres levantaram a voz (e cartazes) para dizer que elas também. A força da frase que virou um movimento "Me too" — em inglês, "eu também" —, criou um senso de coletividade, um organismo conjunto. Todas nós também. É quando a gente finalmente se deu conta de que a dor da outra também é nossa.

Protesto de mulheres em favor da campanha do #MeToo nos Estados Unidos
Protesto de mulheres em favor da campanha do #MeToo nos Estados Unidos Imagem: Getty Images

O "me too" começa em um lugar em que o sonho de mulheres talentosas vira moeda de troca para sexo: Hollywood. É vil você usar o sonho de alguém para conseguir o que você quer, ainda mais quando o que você quer é o corpo da outra.

Mas, no meio artístico, isso foi naturalizado por anos no mundo em que cresci. No jornalístico também, você já viu The Morning Show, na Apple TV? Indico fortemente.

Tem até um nome asqueroso para isso, o teste do sofá. A situação humilhante de ter que escolher entre seu sonho de ter uma carreira e uns minutos em um sofá na sala de um homem poderoso foi por muito tempo constante.

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E ainda deve ser, mas muito menos porque agora esses homens são demitidos, cancelados e até presos. Tudo isso porque os cartazes das mulheres nos dão força para a única atitude capaz de nos tirar do lugar de vítima e colocar os violentadores ali: a denúncia. Basta uma mulher levantar a voz para criar uma onda que levanta cartazes: me too.

Toda a revolução de 2020 começa a partir de denúncias contra Harvey Weinstein, um produtor poderoso de Los Angeles, que, segundo as condenações desde então, estuprou muitas mulheres. Tanto que atravessou o país cometendo crimes sexuais — o cara consegue ser condenado por estupro na Califórnia, ali no Oceano Pacífico, e em Nova Iorque, do outro lado, do Atlântico.

Nessa semana, Weinstein teve as condenações de Nova Iorque anuladas, por um entendimento do juiz de que foram usadas testemunhas que não cabiam e também de que os promotores usaram situações antigas, que não estavam em julgamento.

Ele continua preso, deve ser transferido em breve para a Califórnia, onde segue condenado. Talvez seja julgado de novo em NY futuramente. Mas imagina só como está sendo para essas duas vítimas saber que suas denúncias deram, por enquanto, em nada?

O advogado de Weinstein disse uma frase que resume a sensação: "Weinstein foi julgado pelo seu caráter e não pelas acusações". Mas tem como separar as duas coisas? Estamos falando de estupro.

Harvey Weinstein
Harvey Weinstein Imagem: Stephanie Keith/Getty Images/AFP
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Entendo que juridicamente a gente não pode dar espaço para interpretações subjetivas. Isso cabe aos juízes e é assim que se confia na Justiça. Porém, casos de estupro mexem demais com o resto da sociedade que nem foi estuprada por aquele acusado, e talvez nunca nem tenha sido por ninguém, mas anda na rua com medo constante.

Entra no trabalho com medo. Recebe promoções com medo. Se diverte com medo. Cada vez que uma condenação é anulada, que uma fiança é paga, que um homem ri no bar de uma mulher bêbada e levanta de sua mesa para abater a presa fácil... cada uma dessas vezes eu sinto medo.

Meu pai, falecido há 23 anos, me criou na adolescência dizendo que eu não poderia dar a entender que queria sexo, porque, a partir disso, não poderia mudar de ideia. Não lembro exatamente a frase, mas era algo como "oferecer e não concretizar é pior do que fazer".

Devia estar querendo me proteger de algo que viu acontecer com frequência. Ele estava errado, eu percebi só na vida adulta. A gente pode recuar quantas vezes quiser. Uma pena que eu não possa conversar com meus mortos sobre tais caminhos tortos. Sabe-se lá o impacto de gerações machistas em nossas cabeças culpadas.

Mas as outras tantas mulheres que empunham cartazes me dizem "eu também", "eu também". E eu tenho certeza que, apesar da maneira como fomos criadas, não estaremos sozinhas nunca mais. Eles podem sair da cadeia com o rosto levantado e dar uma festa para seus amigos boleiros na mesma noite, mas a gente vai continuar denunciando e falando e gritando. Para sempre.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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