Luciana Bugni

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Opinião

Que tal aproveitar reprise do show de Madonna e repensar travas sexuais?

Madonna cambaleia uma ressaca que não é de Deus num corredor de hotel. O ano é 1990. Vestindo uma lingerie preta, ela se esfrega em um homem e depois em mais gente cantando em sussurros: "Querendo, precisando, esperando". Alguém quase tira o corpete, quase mostra os seios — e tudo que fica no quase é ainda mais sensual.

Na cena, um bailarino seminu dança de maneira lasciva. Madonna beija as pessoas segurando os rosto delas com as mãos. Artístico, estético, quente — e terno. Há 34 anos, o clipe de "Justify My Love" já chocava essa gente careta e covarde que transa, lógico que tensa, todo mundo aí procriando, mas se recusa a falar do assunto à mesa. A família brasileira abria a revista Veja escandalizada (a manchete decretava "O show de escândalos" e usava a palavra "chocar"). No começo dos anos 90, entre contratos milionários da Playboy para despir as protagonistas das novelas das oito e ausência de calcinha das namoradas do presidente, chocar era sobrenome de Madonna.

Três décadas depois, estou na areia de Copacabana com mais 1,6 milhão de pessoas. Madonna, aos 65 anos, está de lingerie ainda. Ali, ela simula masturbação na frente de todo mundo. Dezenas de telões reproduzem a imagem em full HD para a aglomeração que se estende até o bairro seguinte. A TV aberta escancara o ocorrido para a família tradicional brasileira que se incomoda no sofá. Que história é essa de falar de sexo no horário nobre agora? Agora? Faz 40 anos que ela está fazendo isso.

Madonna tem uma liberdade artística absurda. Pautou sua carreira em ser vanguarda — do audiovisual, à linguagem estética do figurino, ao chocar proposital, tudo ali é calculado para estar na dianteira. E que coisa impressionante, décadas depois e tantas e tantas mulheres que vieram nessa esteira, ela continuar a fazer primeiro. Anitta lança um disco de funk com foco internacional, mostra a bunda, rebola até o chão, mas parece uma garotinha tímida ao lado da Rainha do Pop no palco. Madonna faz Anitta sentar e abre suas pernas como quem diz: "Não liga para os outros, não, menina". E pode? Ela garante que sim.

A cena seguinte é com Pabllo, que coreografa sexo oral na cantora mais famosa do mundo. Elas juntam a bateria carioca para dizem que a música une as pessoas. E depois de tudo, chacoalham a bandeira nacional, maior símbolo atual da moral e bons costumes pregados por aí, e se abraçam com ternura. Cabe tudo isso na mesma cena? Ué, por que não caberia?

Em 1992, Madonna colocou a estética sado em Erotica. "Vou pegar você por trás e me empurrar dentro de sua mente quando você menos esperar (...) Você se permite ficar selvagem? Você deixa minha boca ir aonde ela quiser?", diz a letra sugestiva. O refrão intercala safadeza com aquilo que todo mundo quer: "Erotica/ romance". É a linguagem universal do prazer seguida de uma carinhosa conchinha pois nem só de safadeza vive a mulher (e o homem também).

Quando Madonna veio ao Brasil pela primeira vez, em 1993, o pessoal que estava criando filhos desligava a TV meio contrariado. O visual dominatrix, uma barra de pole dance, pouca roupa e muita sugestão de sexo livre entre homens, entre mulheres, entre todo mundo, não era muito condizente com o Cid Moreira lendo a Bíblia no intervalo comercial. "Garota de Ipanema" cantada com a camiseta da seleção pré-tetra, naquele contexto, era quase uma afronta. Como assim vão manchar de sexualidade o hino da bossa nova (que por acaso são seis estrofes sobre desejo sexual por uma jovem seminua na praia nos anos 50)?

Madonna faz até hoje as referências sexuais serem bonitas de se ver. A dança, o show de luzes e o figurino deixam lindíssimo aquilo que o pessoal faz só quando apaga a luz. A reflexão libertária está aí: será que em vez de culpar o diabo por aquilo que não conseguimos consumir não seria o caso de repensar a própria relação com sexo? Erotismo e romance, explicou Madonna em 1992, estão intimamente ligados. Quem não entendeu até agora estava fazendo o quê? Cantando menções aos tapas, beijos, ódio e desejo? Que bobagem.

"Você faz com que eu sinta que eu não tenho nada a esconder", diz o verso de Like a Virgin, hit dos anos 80, explicitando como é legal que esse tipo de liberdade, construída individualmente, quando se une o casal. É justamente o que é preciso para encontrar alguém que te faz sentir como se tivesse sido tocada pela primeira vez e saber identificar essa sensação.

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E mesmo "Justify My Love", naquela loucura de beijar, lamber, respirar o outro e justificar o amor, tem a ternura de "contar suas histórias e não ter medo do que você é". Simples, a cantora vem explicando há 40 anos. Sem medo de ser quem a gente é, não sobra nem tempo para criticar o sucesso estrondoso do outro no sofá. Na dúvida, uns versinhos e um pouco de rebolado para aliviar a amargura de quem acha que sexo não é assunto popular. Dizem que vai passar tudo na TV nesse fim de semana de novo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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