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Bandeira, coração, soldadinhos: nem alienígenas vão aguentar 7 de setembro

Coração de Dom Pedro 1º na chegada ao Planalto - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coração de Dom Pedro 1º na chegada ao Planalto Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista de Universa

29/08/2022 04h00

As comemorações para o dia 7 de setembro no Brasil foram tema de conversa entre dois alienígenas na semana passada. Samanta, ela/dela, verde, marte-descendente, mãe solo de três filhos, e Janus ele/dele, rosa, kriptoniano, solteiro, estavam fechando o escritório de Observação de Assuntos Bizarros da Via-Láctea, na tarde de sexta-feira, quando decidiram por um happy hour no boteco da esquina.

"Bora tomar uns drinques?", sugere Samanta. "Estou exausta, quero dar uma relaxada."

"Sextou!", responde Janus, sempre a fim de uma confraternização.

Vão a pé, aproveitando o ar friozinho que vem com o começo da noite. Em pouco tempo, estão sentados ao balcão, olhando o bartender preparar duas margaritas, um drinque que os terráqueos não sabem, mas é mesmo das galáxias.

"Nossa, que semana!", desabafa Samanta, antes de dar um longo gole na bebida. "Não sei, não, Janus, mas mais uma semana dessa e... Essas doideiras que acontecem na Terra estão me deixando muito estressada."

"Demais, né? Eu te entendo. Você sozinha cuidando da Latam, na Terra, não é bolinho, não, amiga."

"E aquele Brasil, então? Cada vez mais maluco. Acredita que eles fizeram uma festa com voo de aviãozinho, tiros de soldado, banda e tudo, para receber um coração? Um coração, Janus, de quase 200 anos de idade, uma coisa esquisita, boiando em formol."

"Credo, que nojo!"

"Não é? Nojento demais, me dá até arrepio quando lembro. Aquele coração meio gosmento dentro de um vidro. Acredita que vão deixar para o povo visitar? Imagina os pais levando aquelas crianças fofas da Terra para olhar o coração? Filme de terror, na minha opinião."

"Aposto que foi ideia daquele cara, esqueci o nome, como é mesmo?"

"É, é ele. E claro que aqueles príncipes, aqueles que querem a volta da monarquia, também ajudaram."

"Mas por que exibir um coração, me fala?"

"O coração era de um parente deles, um que foi imperador do Brasil e que brigou com o pai e declarou a independência de outro país, Portugal."

"Briga de família na Terra é fogo, né?"

Samanta suspira e convoca um segundo drinque.

"Epa, vai com calma aí, colega. A gente mal chegou..."

"Ah, me deixa. Estou precisando."

Por precaução, Janus pede um copo de água ao bartender e o deixa ao lado da Margarita de Samanta. Ele prefere não ser obrigado a carregar a colega no colo até o uber da Companhia de Transporte Universal do Elon Musk.

"Voltando ao coração, Janus. Esses terráqueos doidos gostam de guardar partes do corpo de pessoas que eles consideram importantes, sabe? Esse coração estava em uma Igreja, em Portugal. Viajou porque o presidente do Brasil queria fazer uma festança para comemorar os 200 anos de independência do país. Nossa, vai ser já no dia 7, não vou aguentar, vou deletar meu Twitter."

"Jeitinho mórbido de fazer aniversário, hein?"

"Eles gostam disso. No aniversário de 150 anos, importaram o esqueleto do cara."

"Af! Isso, sim, é bizarrice, Samanta", diz Janus. "Vai, bebe aí um pouco de água."

"Ei! Para de querer me controlar."

"Não estou controlando, só cuidando de você."

"E quem falou que preciso de macho para cuidar de mim? Sempre me cuidei sozinha e vou continuar assim."

"Nossa, Samanta, não quis te ofender. Desculpe."

"Eu que peço desculpa, Janus. Você é um cara legal. Mas é que ando meio desiludida com esse Brasil, sabe, nem acho mais graça nas maluquices deles. Parece que dão um passo pra frente e dois para trás. Faz quanto tempo que estou nessa observação. Quando comecei, esse imperador nem tinha nascido... Cansei."

"Tudo bem, colega. Sei que você está carregando um pedaço do planeta nas costas. E é muito chato quando a gente se apega ao povo que a gente observa e dá ruim."

"Pois é. Quando trouxeram o esqueleto do tal imperador, eles estavam em uma ditadura. Sabe, né, aquele tipo de governo atrasadíssimo que não existe mais em lugar nenhum do Universo.

Achei que tinham aprendido e que nunca mais iriam querer uma coisa dessas, mas parece que não."

"Jura? Ainda existe isso?"

"Saíram da ditadura e, nem 40 anos depois, começa tudo de novo. Bandeira, coração, soldadinhos."

"Samanta, vou te dizer uma coisa. Tenho mais de 1.000 anos de observação de planetas. A gente tem que manter o otimismo. E o mais importante: tem que separar trabalho da vida pessoal, sabe? Deixar as bizarrices trancadas no escritório, não se apegar demais."

"Colega, não sei como você consegue. Eu juro, esse Brasil está me deixando à beira de um burnout". Voltando o corpo para encarar Janus, Samanta pergunta: "Posso confiar em você?"

"Claro, manda! O que está acontecendo?"

"Estou com vontade de pedir transferência para o Leste Europeu."

"Menina, isso pode ser um downgrade na sua carreira. Tem certeza?", diz ele, surpreso. "Mas se é o que você quer, tem todo meu apoio."

"Não me importo", diz ela. "E, ah, Janus..."

"Fala, Samanta."

"Gratidão, viu? Eu, aqui, na maior vulnerabilidade, e você me acolhendo sem me julgar nem nada."

Janus dá um sorriso meio torto, meio desconfortável com a linguagem da colega, e chama o bartender de novo:

"Chefia, troca a água por mais duas margaritas, por favor."

"Ué", fala Samanta, surpresa com a mudança de postura.

"Um brinde à Ucrânia!", diz Janus, levantando a taça. "Samanta, esse Brasil está mesmo te fazendo muito mal."

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