Topo

Blog Nós

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com tanta gente pedindo intervenção, até soldado raso entra em depressão

Manifestantes pró-golpe em frente ao Comando Militar do Leste, no centro do Rio de Janeiro - Igor Mello/UOL
Manifestantes pró-golpe em frente ao Comando Militar do Leste, no centro do Rio de Janeiro Imagem: Igor Mello/UOL

Brenda Lee Silva Fucuta

Colunista de Universa

21/11/2022 04h00

Depois de uma semana praticamente sem sair do alojamento, o soldado é levado pelo sargento ao escritório do major.

"Soldado, senta aí", diz o major. Dirigindo-se ao sargento, avisa: "Pode deixar ele comigo."

"Sim, senhor!" responde o sargento, obediente como manda a etiqueta militar, mas chateado porque vai perder a fofoca do dia.

No escritório, o soldado aterrissa na cadeira à frente da mesa do major. Ele está um farrapo, um trapo, nem parece o rapaz forte, enérgico e dedicado de meses atrás.

"Então, soldado, o que está acontecendo? Uma semana sem saudar a bandeira, sem marchar com os colegas, sem bater continência... Esse tipo de coisa a gente não admite, certo? Qual é o problema?", diz o major.

"Senhor major, eu posso falar com sinceridade?"

"Pode, soldado, é para isso que você está aqui."

"É que eu não sou mais a mesma pessoa, sabe? Não consigo dormir, não consigo me concentrar. Não faço mais nada direito. Nem comer, estou comendo. Quero me levantar e cumprir meus deveres, de verdade! Mas, desculpa falar assim, estou com abalo nos nervos."

"Mas, soldado, para com isso! Aqui não tem disso, não."

"Eu sei, eu sei, major. Mas, com todo respeito, talvez eu precise ver um psicólogo, sabe?"

"Psicólogo? Já procurou o capelão?", diz o major, impaciente. Levantar a moral da tropa nunca foi a melhor das suas competências.

"Essa barulheira aí fora, major. Gente gritando, chorando. Aquele cara que toca a corneta..."

"Aquele é de doer, concordo, soldado."

"Eu fico ouvindo a tiazinha gritar 'Socorro! Me salva!' É dia e noite, major. Parece filme de terror. Quem não enlouquece?"

"Tá, tá, eu te entendo. Também me incomoda, mas fazer o quê? A gente tem que aguentar, ficar firme, fazer de conta que não é com a gente."

"Mas eu não consigo, sabe? Quando não é ela que está gritando, tem aquele outro homem que fica chorando no muro. Ontem, então, eu vi no Twitter um deles todo molhado, na fila da comida. Me deu dó, viu..."

"Não tem que ter dó, soldado. Eles estão lá porque querem. Nossas ordens são claras: vamos ficar aqui, fazendo ouvidos de mouco."

"De que, major?"

"Mouco! Surdo, soldado! Indiferente ao clamor."

"Mas eu me sinto culpado, sinto que eu tinha que fazer alguma coisa, ajudar essa gente. Nossa missão não é proteger a vida dos brasileiros? Se eles pedem socorro, a gente não tem que acudir?"

"Não, soldado, nossa missão é proteger a pátria."

"Mas eles se dizem patriotas..."

Sem querer entrar no mérito da questão, o major desvia o assunto.

"Essa tiazinha... Ela é sua parente, por acaso?"

"Não, não é, major."

"Ela lembra alguém que você conhece?"

"Não, minha família e meus amigos são da Bahia."

"Então, tira isso da cabeça. Não tem a ver com você."

"Tá difícil, major. Ontem, eu até tentei dar uma saída do alojamento. Mas foi só olhar aquele monte de gente embaixo da chuva, parecia que o mundo estava se acabando. Voltei pra cama. Que pena deles, meu Deus."

"Não precisa ter pena. Eles estão bem alimentados, cheios de energia e felizes. E tem outra: daqui a pouco, eles vão embora."

"Tem certeza disso, major? Jura? Por que já tá cheio de barraca ali na frente. E vi banheiro também. Acho que vão demorar..."

Percebendo que aquela conversa não estava levando a nada, o major começou a se sentir angustiado. "Que droga, será que esse negócio de depressão é contagioso?" Pediu ao soldado um minuto para pensar. E, como bom oficial, se levantou, colocou as mãos para trás, e deu duas ou três voltas ao redor da mesa. Ficou deliberando com ele mesmo, ponderando alternativas para resolver a questão. Era imperioso que ele tomasse a decisão correta. Do contrário, corria o risco de perder o controle sobre seus subordinados. Finalmente, o major foi iluminado, teve uma epifania.

"Soldado, tenho uma proposta para essa situação!"

"Major", disse o soldado, lágrimas escorrendo pelo rosto, "eu sabia, eu sabia que o senhor daria um jeito".

"Na verdade, soldado, essa nossa conversa foi muito instrutiva, me fez pensar melhor e perceber que eu não estava utilizando a melhor estratégia para tratar do seu problema."

" Ah", disse o soldado.

"Soldado, quando você está diante de uma situação desafiadora no campo de batalha, o que você nunca pode deixar de fazer?"

"Desobedecer?", arriscou o soldado.

"É, é por aí. Numa situação desafiadora, você precisa se lembrar das táticas que seus líderes adotaram em eventos parecidos, certo?"

"Sim, senhor?", respondeu o soldado num tom de pergunta porque ele realmente não estava seguindo o fio do major.

"Então. Estamos vivendo tempos extraordinários, que exigem a revisão dos conceitos, certo, soldado?"

"Certamente, major."

"Eu estava errado quando te disse que aqui não tinha mimimi nem esse negócio de depressão."

"Ah...", suspirou o soldado, pela primeira vez sentindo-se compreendido naquela reunião.

"Entramos em uma nova era, soldado. Nosso líder máximo também deprimiu, vamos admitir. Nem trabalhando está."

"Verdade, senhor. Uma tristeza."

"Então, se ele pode, você também pode."

"Senhor, o que isso quer dizer? Com todo o respeito, senhor, acho que não entendi."

"Quer dizer o seguinte: até o dia 1º de janeiro, você está dispensado das tarefas do quartel. Pode ficar no seu alojamento. Chore até ficar desidratado, durma à vontade, ninguém vai te incomodar. Não há vergonha nenhuma nisso, soldado. Vamos seguir o exemplo de cima."

"Sim, senhor, major! Posso voltar pra cama, então?"

"Pode. Tá dispensado".

*Essa é uma peça de ficção, sem nenhuma pretensão de refletir a realidade dos quartéis brasileiros.

Blog Nós