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Voltamos à Idade Média em direitos da criança, da mulher e de pessoas LGBT+

fizkes/Getty Images/iStockphoto
Imagem: fizkes/Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

18/07/2022 04h00

Daqui a menos de um mês, o Brasil deverá apresentar uma prestação de contas sobre avanços e retrocessos na área dos direitos humanos à ONU, as Nações Unidas. Será a quarta vez que isso acontece.

Se fosse uma prova, o evento nos faria repetir de ano, conforme dados adiantados por uma organização, o Coletivo RPU BR, que utiliza uma ferramenta da ONU para medir a situação dos direitos humanos no país: nesses últimos anos, retrocedemos muito. Não é novidade, certo? Nosso governo —presidente e equipe— defende a transfobia, a população armada, a criminalização do aborto (mesmo em casos de menores de idade), entre outras pautas medievais. Em termos de direitos humanos, estamos mais próximos da pré-Revolução Francesa do que do século 20, quando foi criada e acordada, entre meia centena de países, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A advogada e pastora evangélica que comandou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, estava sendo aguardada para representar o país no evento da prestação de contas. Mas ela deixou a pasta para disputar as eleições, então vai evitar o carão. Talvez o seu ex-chefe, presidente Jair Bolsonaro, queira aproveitar para falar em seu lugar e, assim, reafirmar seu papel de vilão internacional no tema.

No dia 13 de julho, o presidente estava em Imperatriz, segunda maior cidade do Maranhão e, provavelmente, a mais quente. Mesmo sendo nordestina e maranhense —estado governado até pouco tempo pelo Partido Socialista Brasileiro—Imperatriz gosta de Bolsonaro. Talvez porque venha enriquecendo até diante da pandemia, do preço do combustível e da alta da inflação. O dinheiro que aquece as ruas vibrantes da cidade tem o farto lastro do agronegócio.

Então, imagine Bolsonaro em um local que vai aplaudi-lo em vez de vaiá-lo, a poucos meses das eleições, e dentro de um evento evangélico —ocasião em que foi chamado a subir no palco.

Deu no que deu: fala transfóbica e Ecafóbica (Eca = Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei maior que defende os direitos dos menores de idade no país).

"O que nós queremos é que o Joãozinho seja Joãozinho a vida toda. A Mariazinha seja Maria a vida toda", disse o presidente, voltando a bater na tecla do rosa e do azul da ex-ministra Damares. "Que constituam família, que seu caráter não seja deturpado em sala de aula", continuou.

Ai, ai, mesmo sabendo que o discurso é eleitoreiro, dirigido à sua base mais antiquada, mais extemporânea, ainda assim fico pasma com a violência dessa fala. Bolsonaro estava conversando com um público religioso, cristão. Como todos sabemos, o cristianismo de raiz defende a inclusão.

Numa tacada só, o presidente prega a exclusão de pessoas transgênero e de famílias não tradicionais, formadas por mães e pais de pessoas LGBTs e de mães e pais LGBTs. Famílias que pagam impostos, estão cuidando da sua vida, não oferecem nenhum tipo de ameaça à sociedade ou à humanidade.

Caso tivesse se matriculasse em um curso rápido sobre identidade de gênero e orientação sexual, o presidente da República saberia que a biologia gosta de diversidade e que, entre rosa e azul, Maria e João, existem muitos outros tons e nomes. Criados ou não por Deus, os seres humanos são mais complexos do que parecem e, desde o início dos tempos, alguns vem se apaixonando pelo mesmo gênero, enquanto outros preferem o gênero oposto. Alguns, inclusive, transitam entre os gêneros. Nada disso ameaça a sobrevivência da humanidade, como quer o discurso LGBTfóbico.

Vamos, em seguida, analisar qual parte dos direitos humanos a fala do presidente viola quando ele diz "que seu caráter [de família, suponho] não seja deturpado em sala de aula". Ele se refere à educação sexual, claro, chamada equivocada e maldosamente de "ideologia de gênero". Educação sexual —mais uma aula básica de direitos humanos— significa ensinar crianças a conhecer seu corpo e a aprender o valor do respeito e do afeto. Em outras palavras, nas classes de educação sexual, crianças aprendem a dizer não a adultos abusadores, aprendem a evitar infeções sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, aprendem a respeitar o outro em um relacionamento amoroso. Quando se ataca a educação sexual, está se atacando o direito de um adolescente ser respeitado também por ser mulher, travesti, transexual, bissexual, gay ou lésbica. Mais uma vez: a educação sexual não é o ensino de sexo para crianças, mas o ensino do amor-próprio e do amor pelos outros.

Não bastasse o discurso que prega a exclusão e o desamor, o presidente comete mais uma safadeza filosófica ao dizer que a descriminalização do aborto iria igualar a interrupção da gravidez à extração de dente.

"O que alguns querem para o nosso Brasil? Querem aprovar o aborto como se fosse a extração de um dente. Dizem que isso é questão de saúde e não uma questão de acreditar que a vida começa na concepção", ele disse, em Imperatriz. Mais ou menos na mesma época, a TV Globo havia revelado que o ministério de Damares havia mandado investigar a equipe médica que fez o aborto na criança de 11 anos no mês passado.

Nessa hora, eu fico sonhando com a Michelle chamando o marido para uma conversinha (quem dera). Nenhuma mulher, em nenhum lugar do mundo, diz: "Ah, hoje vou fazer um aborto" como se dissesse "ah, hoje vou ao dentista". Aliás, quem mais sofre com a interrupção da gravidez sempre será a grávida. Nenhuma pessoa não grávida pode dizer que abortar é algo corriqueiro, banal, para a mulher que decide ou precisa interromper a gestação. Sequestrar o protagonista de uma grávida isso, sim, é criminoso.

Imagine, então, quando se critica a interrupção da gestação quando a grávida é uma criança. Sim, presidente, você sabe que é uma questão de saúde da menina grávida. Você sabe, porque se cerca de uma equipe médica para lhe explicar que uma criança corre risco de vida durante a gestação e durante o parto. O Estado brasileiro, tanto na sua Constituição quanto no seu Estatuto da Criança e do Adolescente, se comprometeu a proteger as vidas de crianças (especialmente das que estão vivas, andando e respirando). Não engane seu eleitorado dizendo algo diferente. É covardia.

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