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Três mulheres com mais de 60 anos assistem a 'Boa Sorte, Leo Grande'

A atriz Emma Thompson e ator Daryl McCormack em cena de "Boa Sorte, Leo Grande" - Divulgação
A atriz Emma Thompson e ator Daryl McCormack em cena de "Boa Sorte, Leo Grande" Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

12/09/2022 04h00

Depois de três anos de Netflix, volto a entrar numa sala de cinema para ver "Boa Sorte, Leo Grande", filme que causou sensação em dois grupos de mulheres com mais de 50 dos quais faço parte no WhatsApp.

Me sento bem perto de duas amigas falantes, que aproveitam o trailer para colocar a vida em dia. Estou quase me levantando, em busca de outro lugar, quando o bate papo fica interessante. Me dou o direito de ouvir, já que as amigas parecem dispostas a compartilhar a conversa com o cinema inteiro.

"Ser vó é igual ser mãe duas vezes", diz a amiga A. "O João já tem 4 anos!"

"Quatro, já?", pergunta a amiga B.

" ... e eu ainda lavo e passo a roupinha dele."

"Nossa, você passa?"

"E olha que minha filha sabe que eu faço faculdade, que eu trabalho, que eu cuido da minha casa e preparo a janta pro irmão dela. Mesmo assim, toda semana, a Nina entrega a trouxa de roupa suja do João lá em casa."

"Você já falou com ela?"

"Com quem?"

"Com sua filha? Já falou que não dá mais?"

"Falei, ih se falei. Já falei, já jurei que não ia mais lavar, mas não adianta. Inclusive, chamei o marido dela para uma conversa. Que é isso? Eles não quiseram ter filho? Agora, têm que dar conta, têm que..."

"Psiu. Começou", interrompe a amiga B.

O filme começou, finalmente. Emma Thompson, 63 anos, está na tela. Anda, nervosa, em um quarto de hotel. Todos sabemos que ela está esperando pelo profissional de sexo com quem vai contracenar. Essa é a sinopse do filme: mulher mais velha, que nunca teve um orgasmo com o marido, contrata homem mais jovem como parceiro sexual.

"Ah, adoro essa atriz", sussurra a amiga B.

A amiga A não responde, o que me deixa aliviada. Pelo jeito, só o barulho da pipoca vai me incomodar durante o filme.

O profissional do sexo chega ao quarto. É o ator Daryl McCormack, 30 anos, interpretando o papel de um jovem lindo que transa com mulheres mais velhas para ganhar a vida. Ele é bom no que faz e, durante todo o filme, vai conduzir Nancy (Emma) em uma dança de desejo e vergonha, repressão e curiosidade.

Leo tira a camisa enquanto Emma vai se trocar no banheiro e a amiga B não se segura.

"Nossa! ", diz a amiga B. "A Emma se deu bem."

"Xi", reclama A. "Vamos ver."

As duas amigas se comportam por trinta minutos, mais ou menos, até a hora em que Nancy mostra a Leo a lista de deveres dos dois para o segundo encontro. Na lista constam sexo oral e 69. Coisas das quais Nancy só ouviu falar (o falecido marido, ela explica a Leo, achava degradante qualquer atividade extracurricular).

"Há, não acredito", diz a amiga B. "Nem minha vó era tão boba."

"Eles são ingleses", sussurra A. "Muito reprimidos."

Sim, a personagem de Nancy é reprimida. Mas não devia ser. Afinal, ela nasceu nos anos 1960 no país dos Beatles, Rolling Stones e dos punks, motivo pelo qual achei um exagero do roteiro. Ao fazer de Nancy uma professora de religião aposentada, cujo único parceiro sexual foi o marido, me pareceu que ela ora representava a si mesma, ora a mãe dela. Nesse caso, concordo totalmente com a amiga B: sexo oral não poderia ser uma novidade para uma mulher da idade de Nancy.

Por outro lado, o filme aborda várias questões interessantes para mulheres com mais de 60: o sexo pago, o sexo pago por mulher, as decepções com a maternidade e a feiura ou a beleza de um corpo mais velho.

Para não dar spoiler, não vou me alongar sobre a maternidade ou sobre o sexo pago. São questões importantes do roteiro, mas me incomodei com o jeito meio forçado com que elas foram tratadas. Em vez de enxergar complexidade no encontro erótico de uma mulher mais velha com um homem mais jovem, fiquei com a sensação de que esses temas —amarguras da maternidade de Nancy e justificativa para a profissão de Leo— foram encaixados de maneira superficial. (Me diga você o que acha depois de assistir.)

De qualquer maneira, esse texto não pretende ser uma resenha, apenas uma crônica sobre mulheres com mais de 60 vendo um filme que pretende ser libertador para mulheres com mais de 60. Apesar de todas as ressalvas que fiz aqui, "Boa Sorte, Leo Grande", vale um Oscar. Senão pelo conjunto da obra, então pelo que a última cena significa para nós, mulheres.

"Não acredito que ela fez isso!" diz a amiga A.

"Não falei que amo ela?" responde a amiga B.

"Eu também!" digo. (Não, não digo. Mas queria dizer.)

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