Topo

Blog do Dunker

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os erros que tornaram difícil suportar dor da covid, segundo a psicanálise

Brasil teve desempenho ruim no enfrentamento da covid-19, ao mesmo tempo que liderou lista de casos de depressão e ansiedade - Mikhail Nilov/ Pexels
Brasil teve desempenho ruim no enfrentamento da covid-19, ao mesmo tempo que liderou lista de casos de depressão e ansiedade Imagem: Mikhail Nilov/ Pexels

18/02/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Freud escreveu seu trabalho sobre neuroses de guerra em 1919 reformulando sua teoria psicanalítica do trauma, logo depois da primeira guerra mundial. "As neuroses de guerra são apenas neuroses traumáticas, que, como sabemos, ocorrem em tempos de paz também" [1].

Chama a atenção do clínico o fato de que nesta situação o sujeito sonhe recorrentemente que está diante da mesma situação que teria enfrentado no front. Ou seja, o trauma suspende o tempo, faz com que as coisas se repitam como se não tivessem propriamente acontecido, e estão prestes a acontecer "de novo".

Fazer um balanço dos prejuízos psíquicos trazidos pela experiência da covid-19, durante os anos de 2019-2022, envolve pensar uma situação híbrida, entre guerra e paz, vivida pelo Brasil neste período.

Os sonhos traumáticos se repetiram, as síndromes fóbicas, depressiva e de ansiedade também. Desde os primeiros momentos e depois se confirmariam números de crescimento em torno de 70% a 90%.

Entre 98 países o Brasil ficou em último lugar no enfrentamento da pandemia, considerando total de mortos, uso de vacinas, políticas públicas e testagem. Curiosamente, ele ficou em primeiro quando se considera a preocupação com a saúde mental, mesma posição quando se trata da incidência geral de depressão e ansiedade.

Levamos em conta que uma situação nunca é inteiramente traumática por si só.

Encontros penosos e infortúnios de toda espécie podem gerar sofrimento intenso, mas nem por isso, serão considerados, clinicamente traumáticos.

O potencial de traumatização depende tanto da aptidão do eu para simbolizar situações adversas quanto da interpretação que mobilizamos para o acontecimento traumático em nossa fantasia.

O traumático depende da relação entre o sofrimento que reconhecemos necessário, aquele que é contingente ou inesperado e aquele que poderia ter sido evitado.

O que caracteriza experiência social brasileira é justamente este excesso de mortes evitáveis, decorrentes do atraso e da inépcia das políticas federais de contratação e estimulação das vacinas, bem como de incentivo a procedimentos inócuos de medicação e cuidado.

É assim, também que falas ou encontros anódinos do ponto de vista do observador externo podem tornar-se verdadeiros núcleos de repetição.

Em grego infortúnio se diz atychia, ou seja, suspensão ou negação da tyiché (fortuna). A tyché ao lado de automaton (espontaneidade) é uma das causas acidentais (symbebekos), que por sua vez é um caso particular da causalidade eficiente. Mas a tyché, ao contrário de automaton, envolve algum grau de escolha racional (proairesis), nisso também ela se diferencia da necessidade própria do mundo físico (ananke).

Lacan trouxe a noção de tyché para reler a teoria freudiana do trauma, em termos de mal-encontro do Real e de buraco na verdade, segundo o neologismo troumathisme (verdade, furo, trauma).

Isso nos ajuda a entender como, diante do evento de um vírus originado na natureza (ananke), que nos submeteu a todos como um infortúnio (atychia), conforme recursos individualmente diversos, ainda assim teria sido possível outro modo de ação ou escolha (proairesis).

Ou seja, o trauma não é um evento marcante e destruidor, mas um processo que produz sujeitos para uma verdade, cuja temporalidade vai da necessidade a contingência.

Monitorando a situação brasileira da covid, retrospectivamente, podemos isolar cinco movimentos que concorreram não apenas para tornar mais difícil de suportar o sofrimento inevitável, mas de expandir a mal-estar para além do necessário.

Em primeiro lugar temos que apreciar a situação de alta indeterminação na qual a epidemia chegou: sem descrição precisa da etiopatologia, sem tratamentos testados, sem estratégias consagradas de abordagem.

Nesta situação, de emergência de um objeto que nosso saber não é capaz de dominar, teria sido altamente recomendável a prudência e a preparação dos espíritos para um momento de incerteza, reunindo recursos para enfrentar o desconhecido.

Mas a atitude do governo Bolsonaro caminhou na direção oposta, afirmando tratar-se de uma "gripezinha", de um problema menor e que não deveria gerar preocupação, muito menos unidade de esforços.

Ora, diante do infortúnio, nada pior do que naturalizá-lo, antes de conhecê-lo. Isso não é apenas uma imperícia na arte de governar, mas também um discurso de ignorância soberba, emanado de autoridade, em um momento na qual buscamos a autoridade instituída como forma espontânea (automaton) de proteção.

Em termos freudianos, isso não prepara o eu para um evento penoso, nem mobiliza o eu para o enfrentamento da realidade perigosa, mas intensifica identificações com o líder, reatualizando nossa resposta de desamparo infantil diante do medo. Como se a confiança nos adultos parentais fosse por si mesmo uma fonte de ação correta contra um adversário exterior.

Ademais este adversário não é apresentado como uma força da natureza (ananke), mas como um inimigo insinuado, talvez enviado por forças sem nome contra a qual podemos nos unir em oposição.

Neste sentido, a psicanálise foi chamada a se reunir com as ciências do comportamento e a epidemiologia para tratar o negacionismo associado com a não aderência ao tratamento, seja ele médico ou psicológico [2].

Isso nos leva ao segundo erro que consistiu na moralização do evento pandêmico. Isso significou sugerir que interpretações ligadas a compleição física (como um histórico de ex-atleta), ou a fé religiosa, poderiam agir como forças de determinação.

Diante da emergência da angústia tendemos a procurar refúgio na autoridade e esta é representada, via de regra, por uma enunciação que vale por si mesmo, uma palavra de ordem, chamada pela psicanálise de significante mestre.

Isso gradualmente favoreceu a implantação de uma divisão subjetiva diante das medidas sanitárias, como se isso pudesse ser questão de escolha individual (proairesis).

Na esteira da ausência de uma política nacional unificada e da transferência da decisão para estados e municípios, a sugestão de que a adesão a tratamentos poderia ser objeto de escolha individual sobrepõe o discurso institucional às dúvidas que já habitavam muitas pessoas quanto a como proceder.

Diante da lei simbólica a posição do sujeito, particularmente do sujeito neurótico, é estruturalmente de divisão.

Demandar restrições de circulação e quarentena doméstica implica perda de liberdade, mas esta perda pode ser consentida pelo sujeito, na medida em que este reconheça a lei simbólica, como sua.

Mas nem sempre será este o caso, particularmente em situação de moralização imaginária da lei.

Convocar decisões em situação de ignorância presumida é acentuar a angústia.

O terceiro malefício acelerado pela condução discursiva do governo federal, combinado com as diferentes tensões políticas locais, diz respeito ao incremento gradual do número de mortos.

Com vimos não se trata apenas de perdas, mas da forma como elas são interpretadas, ou seja, de como favorecemos ou desfavorecemos o processo de luto.

Com se sabe o luto compreende tanto processos individuais de reconstrução da pessoa que se perdeu, como compartilhar memórias coletivas e ângulos sociais daquela pessoa que nos deixou. Neste sentido, manifestações públicas de luto fazem lembrar e concorrem para este trabalho comum.

Afirmações que contabilizam perdas apenas como números ou negam a dignidade singular de cada vida, ou seja, em vez da necessidade natural (ananké), a causalidade eficiente (symbebekos) e infortúnio (atychia); em vez do cotidiano jornalístico (automaton), a nossa capacidade de decidir (proairesis) entre a solidariedade e o medo.

Sabe-se que lutos retidos, negados ou interrompidos são fonte potencial de depressões e concorrem fortemente para o desencadeamento de novos sintomas.

Mas para a psicanálise, o luto não é apenas um episódio desafortunado, que deve ser superado, mas um verdadeiro modelo de simbolização e produção de sujeitos.

Tornamo-nos o que somos pelas perdas que integramos e pelos resíduos que carregamos do que foi deixado para trás, nossa infância, nossas ilusões, nossas fantasias, nossos sonhos esquecidos e dormentes.

O quarto movimento contraproducente em termos de saúde mental diz respeito a política de vacinação e uso de máscara protetiva.

A introdução de substâncias ou objetos no interior de nossos corpos é um de nossos temores infantis mais antigos. Assim também o temor de um rosto incógnito nos leva tanto a angústia quanto ao erotismo.

Isso envolve a intromissão direta no Estado em nossos corpos, em acordo com a biopolítica descrita por Foucault [3] e de sua derivação necropolítica apresentada por Mbembe [4].

A combinação alternada entre estas duas políticas revela-se em vociferações tais como "todos morrem", na chamada política suicidária, incluindo acobertamento de procedimentos médicos inescrupulosos, atravessamento de compra de vacinas, ironização de vacinas feitas por outros países e estados, como a "vachina" ou a vacina do Butantã. Fabulações recreativas como estas, assim como quem toma vacina transforma-se em jacaré ou contrai mais facilmente HIV.

Ou seja, se nos faltava um saber sobre as causas reais e tratamentos eficazes, não foi difícil produzir um saber para o gozo e capricho dos que incorporaram a tragédia em sua própria forma de governar contra inimigos, internos e externos.

Chegamos assim ao quinto movimento, que reúne e converge para si uma única solução traumática.

Um objeto sem forma nem imagem que se infiltra em nossos corpos, um significante mestre de uma autoridade corrompida, a negação da perda como obstrução do sujeito e um saber extrair mais valor até mesmo sobre o morrer.

O trauma carrega consigo sempre um excesso de verdade, ou seja, um buraco no saber e na consistência que supomos ao Outro.

A existência de um vírus letal que nossa ciência não consegue entender e dominar é um protótipo deste buraco no simbólico.

A negação da verdade é uma condição para a reaparição do Real como traumático, ou seja, algo que se apresenta em estrutura de repetição e que parece preencher perfeitamente nossas estruturas de ficção.

Quantos filmes já não vimos sobre epidemias que nos exterminam, como "Resident Evil", quantos livros como "A Peste", de Albert Camus ou "Um Diário do Ano da Peste" de Daniel Defoe, quantos realities sobre extermínio e sobrevivência.

Mas há muitas formas de saber, assim como muitas variedades de recusar-se a saber.

No fundo, a neurose sempre se apoia na negação deste saber sobre nossa precariedade. Ela evita nossa condição trágica, trocando-a por uma condição culposa. Ela evita nos deparar com o desejo infinito em uma forma finita de expressão e realização.

É por isso também que a pandemia deixou um rastro de incremento de angústia e, consequentemente, de piora em nossos sintomas, particularmente entre adolescentes, idosos e mulheres.

Ao dar corpo e carne a fantasias mais ou menos típicas de morte e punição, de vingança e de contaminação pelo Outro, a covid conseguiu unificar nossas quatro principais narrativas de sofrimento: um objeto alienígena intrusivo, corrompendo pactos de produção e felicidade, impulsionando práticas de alienação, despertando, na vigília e nos sonhos, monstros estranhos na nossa mais íntima morada.

Entre a solidão e a solitude, entre a ocupação, a devastação e o languishing (desalento), entre a certeza do perigo e a indeterminação do fim, cada qual foi convidado a ajustar contas com a sua terceira margem do rio.

Mas a necessidade politicamente criada, de atravessar a pandemia em estado de guerra, não impediu que a consciência com a saúde mental e com o cuidado de si tenha se imposto aos brasileiros.

Movimentos sociais em torno da escuta, do acolhimento e da psicoterapia se alastraram pelo país, de modo espontâneo e solidário.

A valorização da qualidade de nossos vínculos e relações, os sintomas emergentes e os sofrimentos compartilhados, introduziram definitivamente na pauta a necessidade e o desejo de novas sociabilidades, novos modos de pertencimento e de subjetivação do mal-estar.

REFERÊNCIAS

[1] Freud, S. (1919/2015) Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra. v.17. In: Sigmund Freud Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, p. 261.

[2] Austin Ratner & Nisarg Gandhi (2020) Psychoanalysis in combatting mass non-adherence to medical advice. The Lancet. V. 396, Issue 10264, 1730, Nov. 28, 2020.

[3] Foucault, M. (1989) O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.

[4] Mbembe, A. (2011) Necropolítica. São Paulo: N-1.