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Blog do Dunker

OPINIÃO

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Diário online mostra jornada antidepressiva diante da covid-19 e Bolsonaro

Uma das tiras da série "Meu Querido Diário" publicado no site oficial de Allan Sieber - Allan Sieber
Uma das tiras da série "Meu Querido Diário" publicado no site oficial de Allan Sieber Imagem: Allan Sieber

15/10/2021 04h00

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Como anunciado pela Folha, há uma onda de relançamentos de HQs históricos que vai da Flavio Colin a Maurício de Sousa, passando por Jayme Cortez, Ota, Luiz Gê e Julio Shimamoto. Em meio a esta retomada saudamos a chegada de novo material deste clássico, o gaúcho Allan Sieber, com o seu "O Diário" que sai agora, em novembro, pela Z Edições.

O trabalho de Allan Sieber é conhecido e reconhecido no cenário nacional dos quadrinhos e do humor. Emergindo no cenário brasileiro dos anos 1990, no qual o humor exerceu um papel ainda por ser plenamente avaliado, no processo de redemocratização do Brasil pós-ditadura, Allan é uma expressão gaúcho-carioca da cultura trash nacional, cujas expressões marcantes foram a MTV e o Casseta e Planeta, do qual ele participou.

Com a chegada da internet e a expansão global das estéticas expressivas, a importância do trash nacional ficou um tanto escondida.

Uma recuperação esquemática diria que o trash nacional, emerge como valorização da nossa precariedade de meios, de nossas limitações de acesso a materiais e da inacessibilidade de tecnologias bem-acabadas. Surgiu assim um movimento crítico brasileiro focado na tematização de suas próprias limitações.

A fórmula já havia sido anunciada pelos tropicalistas, ou seja, apropriar-se de movimentos internacionais em formato abrasileirado, combinando alta e baixa cultura produzindo crítica ácida ao modo de vida "normalopático" das classes médias.

Esta era também a fórmula de South Park, com sua crítica das celebridades, seu humor politicamente incorreto e sua estética do absurdo.

Mas se na série americana tratava-se de partir de uma fantasia grotesca, com um apontamento moral firme, tomando uma pessoa como objeto de ataque e terminando em uma paródia de ação educativa, na sua versão brasileira o alvo de ataque acaba sendo o próprio quadrinista, que consegue manter as exigências de uma firme moralidade ao lado de uma degradação narrativa de si mesmo, tudo isso regado com fantasias grotescas.

Ora a chave do procedimento é a constante autoparódia, o sentimento de si rebaixado, que cria o efeito de distanciamento entre quem diz, o que diz e como diz.

Depois de muitos anos constrangidos ao fechamento e ao discurso cultural padrão, de corte televisivo, com suas censuras e prescrições óbvias, a aparição do humor trash —desde Jô Soares, com o Planeta dos Homens, até Casseta e Planeta— marcou a emergência de um respiro democrático. Mas de repente, TV Pirata e Hermes e Renato viraram coisas como CQC e Pânico, abrindo as portas para o seu contrário ideológico.

Retornar à crítica trash brasileira, implicaria retomar a literatura visionária de José Agrippino em PanAmérica para reconstruir processos pelos quais narrativas, discursos e plataformas de esquerda foram parasitados pela direita emergente.

Por exemplo, para entender o tosco olavista basta inverter os termos desta fórmula e perceber como a autoironia se transforma em heteroironia.

O resultado é que as mais grotescas fantasias são apresentadas a céu aberto como delírios de ciência. A contraidentificação torna-se elogio de si mesmo. A linguagem chula, cheia de palavrões e preconceitos, torna-se apenas agressiva e ofensiva.

Perde-se o efeito de distanciamento estético da moralidade ou da educação. Em seu lugar o reforço da crença convicta de valores e formas de vida autoverdadeiras. A crítica vira ideologia.

Devemos a Sieber a descoberta de significante chave desta operação, a saber: "tosco".

Em menos de vinte anos a palavra deixou de designar alguém que fazia o que podia com o que tinha —ao modo de uma gambiarra, na vida e no trabalho, um autêntico traço de sobrevivência desenvolvido pela cultura brasileira— em uma expressão do mau gosto, da violência depreciativa e opressiva, incluindo desfaçatez pelas universidades, pela arte e pela ciência.

Se há tão pouco tempo, antes da nova onda de celebrismo e cancelamento, o uso da autenticidade beatnik era uma ferramenta de humor e crítica social, o que a teria feito inverter-se em seu contrário ideológico?

Neste sentido, o diário de Sieber é uma espécie de mapa autobiográfico para entender como isso tudo aconteceu. Ele começa em 10 de fevereiro de 2018, meses antes da eleição de Bolsonaro, e vai até 30 de dezembro de 2020, auge da pandemia da covid-19. Ele retrata uma segunda solução possível para a conversão forçada da estética trash em discurso de poder: a depressão.

Adorno dizia que não é porque você é paranoico que os outros não te perseguem. Assim, também não é porque você é depressivo que a realidade não seja deprimente.

Fechado em seu cubículo de trabalho durante este longo período, o diário é composto por pequenos cartuns, com pequeno texto e imagem. O conjunto é grotesco, inacabado e "sujo", guardando as características de um esboço. Aqui a estratégia funciona muito bem aos propósitos.

Lembremos que o esboço é um tipo de desenho feito para si, uma espécie de pensamento livre esquematizado para que o autor possa pensar consigo mesmo, com os diálogos consigo mesmo que Sieber nos conta. Só depois o esboço evolui para um projeto e encontra sua forma ou acabamento definitivo.

Como observou o crítico de arte John Berger, o esboço é uma imaginação privada feita pelo autor para o autor, a obra um feito público para os outros. Portanto, nada melhor do que o esboço para dar suporte a esta viagem interior pela depressão.

Do ponto de vista clínico, o material deveria ser usado em aulas de psicopatologia, tal a minúcia na apresentação dos sintomas e sua evolução ao longo do tempo.

O uso da bebida e nicotina como antidepressivos "roots", levando ao final a dois problemas: a depressão e a dependência química. A inexplicável dissolução dos laços com os outros. O sempre difícil de explicar sentimento "impossível" de agir como, por outro lado, sabemos, deveríamos agir (sair de casa, ver pessoas, frequentar vernissages).

A sustentação da vida social se torna um martírio para o depressivo, assim como a sustentação de seu papel social, seu "eu" ficcional, neste caso teve a companhia do Allan Sieber personagem de si mesmo.

Como em tantos outros casos, se é que teremos um final feliz (arghhh !!!), a escrita e o desenho terão tido um papel decisivo.

Até certo ponto a estetização do sofrimento apenas concorre para que o chamado por reconhecimento e ajuda seja melhor posto. Isso não é pouco, mas em geral toma muito mais tempo do que deveria tomar.

São tiras e mais tiras com um solavanco monótono de autoavaliações sobre a inviabilidade de si mesmo, sobre as oportunidades perdidas, sobre a miséria a que se foi levado, sobre a culpa por casamentos e amizades perdidas, sem nenhuma explicação real convincente.

Por outro lado, a miséria e pequenez egoica, que pode nos inspirar compaixão e solidariedade convivem com expressões erráticas de agressividade, revolta e inconformismo.

Aqui os palavrões e achincalhamentos, dirigidos a si na primeira rodada, agora são revertidos aos outros, compondo a paisagem para os famosos desvios cognitivos: hipocondríaco (associado com escolaridade), ideação suicida e pensamentos em torno da morte (associado com os não casados), autocompaixão (associado com aumento da idade), autodepreciação e ideação de culpa (tendem a diminuir com a idade), bem como desesperança, ideias de fracasso e pensamentos sobre morte.

A figura fundamental de seu filho Max dá o tom da maior parte das aventuras, a razão para as incursões para fora de casa, os passeios pela cidade, as elaborações sobre futuros possíveis e passados menos penosos. É para ele que se reserva a transmissão do melhor, a empatia e o respeito pelo sentimento dos outros.

Sabemos como basta um elemento para que o processo depressivo se estanque, mas sabemos também dos custos psíquicos para a pessoa que ocupa este lugar.

A percepção deste fato é um dos momentos mais sensível do processo. Assim como também a redução das idealizações com os "verdadeiros" máximos da HQ e das artes que em vez de funcionarem como horizontes a perseguir e posições com as quais se comparar produtivamente, porque fonte de aprendizagem, elas se tornam apenas fonte de justificação psíquica para inação, para o apequenamento e dali a pouco nova ilação megalomaníaca, pela qual esta poderia finalmente, no juízo final, ser vencida.

A chegada de Bolsonaro ao poder acaba dando suporte direcional para a indignação, mas, mesmo assim, ela vai ganhando força aos poucos, assim como o verdadeiro desejo de confrontação, que tantas vezes permanece incubado nos depressivos, contido em seus delírios de vingança cujo efeito é mais paralisação.

Assim também, com a aparição real do perigo de vida representado pela covid-19, a resposta traz uma nova camada, inesperada, de realismo e de retomada do contato com a vida social.

Apesar das dificuldades materiais e da penúria pode-se dizer que Allan foi um destes que se beneficiou psiquicamente com a pandemia.

O recolhimento do "mundo" aos seus cubículos de trabalho, lazer e sono transformou seu modo de vida, repentinamente, de desviante em compulsório.

A crise econômica e a redução de oferta de trabalho conferiram aquele ingrediente realístico que parece ter sincronizado o tempo do mundo com o tempo depressivo.

Seus hábitos "engordatícios" e liminarmente "anti-higiênicos" tornaram-se a regra. Suas suspeitas paranoicas ganharam corpo encarnado e redivivo. O tema inabitual da morte tornou-se cotidiano.

Neste mundo de infelicidade e limitação generalizada ele parecia mais adaptado do que outros. Como teria dito aquele famoso hipocondríaco que em sua lápide registrou: eu não te disse!

O mais delicioso nesta viagem antidepressiva são os passeios insólitos, as pequenas epifanias do cotidiano, da barata no sapato aos juízos mais erráticos sobre a música, a arte e os costumes nacionais.

Depois de anos perdendo miseravelmente no jogo da razão, finalmente o mundo lhe deu uma ajuda e, ao que parece, ele finalmente saiu para uma nova rodada, há tanto prometida, de surfe na vida.

Fora isso, o mais delicioso nesta viagem antidepressiva são os passeios insólitos, as pequenas epifanias do cotidiano, da barata no sapato aos juízos mais erráticos sobre a música, a arte e os costumes nacionais.

Reserva-se a parte mais polêmica para seu modo de tratamento das mulheres, tantas vezes polêmico e que de certa maneira resiste aos novos tempos de maior respeito discursivo. Sim, elas são a fusão entre o impossível de alcançar e o que está ao seu lado, a solução e o problema, a inveja impotente e a destruição soberana.

Vimos que a estética trash emerge como uma voz a ser reconhecida, por seu caráter rústico e precário, como expressão da working class.

Junto com ela aparecem, pela primeira vez, em fanzines, nas bandas punk e metal, nos HQs de humor crítico, nos horários de televisão "alternativos", incluindo "enlatados" erráticos como "Beavis e Butt-Head" e "A Vaca e o Frango" e filmes como "Pink Flamingos" (1972), de John Waters, com a divina Divine, "Vídeodrome" (1983), de David Cronenberg, ou "Paris Is Burning" (1990), de Jennie Livingston.

Tudo isso formou um discurso. É neste discurso que se pode entender "Vida de Estagiário" (2005), "Preto no Branco" (2004) sem falar no sensacional e atualíssimo "A Vida Secreta dos Objetos" (2014). O que dizer da animação "Deus é Pai" (1999), com Deus reclamando de seu filho Jesus para a psicóloga?

Ao que tudo indica ficamos um tanto mais conservadores com a popularização da internet a partir dos anos 2010. Criamos e reforçamos códigos de constrangimento moral, com uma nova vocação política, buscando coibir excessos. Foi também o período no qual o trash, metódico ou de raiz, tornou-se a regra, perdendo naturalmente sua força crítica.

Se queremos agora encontrar um novo caminho, que nos tire da parasitagem neofascista é preciso retomar o veio crítico e entender o que foram os anos 1990-2010, o que não se pode ser feito sem Rê Bordosa, Dona Marta, Os Skrotinhos, Malvados, Geraldão, e a mítica Toscographics (1999-2016).

O diário de Alan Sieber é o diário da peste antes da peste. É o diário da vida pensada a partir do 1,99, com toda a profundidade brasileira que isso carrega, para o bem e para o mal. Espero que vocês desfrutem desta viagem como eu desfrutei.