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Blog do Dunker

Como saber se o negacionismo não é um tipo de delírio que deve ser tratado?

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Imagem: rawpixel.com/ Freepik

09/10/2020 04h00

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Costumo dizer que cada um tem direito a pelo menos uma crença patológica, completamente refratária aos fatos e incorrigível do ponto de vista cognitivo, com tendência de evolução invasiva. Esta poderia ser a definição aproximada do que vem a ser um delírio.

Ou seja, um delírio não é uma ideia inconciliável com as crenças aceitas genericamente por uma cultura, muito menos algo que seria incompatível com a realidade. Por exemplo, se alguém declara que acredita que algumas pessoas não morrem, podemos pensar que ela habita o mundo dos mitos, ou então que ela é uma criança que ainda não entendeu o significado irreversível da morte.

Mas se a mesma pessoa declara que pessoas voltam a viver em função de uma força maior que restitui um corpo à sua realidade vivente, depois dele ser efetivamente declarado inativo em termos de atividade cerebral, cardíaca e sistêmica, encaramos isso como uma crença religiosa.

Se esta pessoa disser que acredita que em cada culto ou missa o corpo de uma pessoa se converte em um fragmento de farinha e seu sangue se converte em vinho cerimonial, nos voltaremos para o que significa "acreditar". Isso pode ser uma metáfora, um símbolo ou uma alegoria sobre a realidade, e neste registro estamos dispostos a acolher e respeitar esta crença como uma ideia importante para assegurar respostas para problemas em aberto sobre o sentido da vida e os propósitos de nossa existência.

Os manuais de psicopatologia nos advertem especificamente sobre a imperícia que constitui tomar formas religiosas ou políticas como manifestações psicopatológicas.

Ou seja, um conjunto de afirmações que contraria fortemente crenças genéricas da cultura, fatos históricos ou evidências científicas, mas não pode ser chamado de um verdadeiro delírio apenas e tão somente pelo seu conteúdo, mas sobretudo pela sua forma.

Uma característica das formações delirantes é que elas envolvem um tipo específico de certeza. Indiretamente é isso que está envolvido na ideia de fé, ou seja, a admissão indireta de que aquele conteúdo não é de fato objeto de prova objetiva e, portanto, não pode gerar certeza, mas apenas e tão somente uma convicção subjetiva.

Geralmente pensamos que aquele a quem falta fé é a pessoa que tem dúvidas em demasia, quando na verdade parece ser o contrário, ou seja, prova de fé é a própria presença da dúvida ou da incerteza.

Delírios como o de que os outros nos perseguem (paranoia), que os outros nos amam (erotomania), que os outros nos traem (ciúmes), de que somos pessoas grandiosas (megalomania), de que somos pessoas imprestáveis (melancolia) ou que o mundo gira ao nosso redor (autorreferência) são caracterizados pela impossibilidade de negação.

Mulher faz gesto de pare com as mãos - tirachard/ Freepik - tirachard/ Freepik
Imagem: tirachard/ Freepik

Mesmo quando a "realidade" é mostrada de forma ostensiva e declarada, em contradição com o delírio, a pessoa ajusta ou prolonga o delírio para que ele assimile aquele fato como curiosa comprovação do que se estava anteriormente convicto.

Quando falamos hoje em negacionismo como um problema político potencializado pelas redes sociais e pela interconexão global entre as pessoas, poucos se lembrarão que o modelo básico e elementar do negacionismo é o modelo clínico.

Como deve ter ficado claro até aqui, se as formas religiosas não podem ser consideradas delirantes, apesar de seu conteúdo eventualmente bizarro ou errático, muitos delírios se apropriam e se apoiam em narrativas políticas e religiosas para encontrar expressão e reconhecimento.

Isso acontece porque o delírio não é apenas um sintoma que brota do cérebro das pessoas, como uma espécie de mau funcionamento de uma engrenagem, ele é também uma tentativa de cura, uma forma de socializar experiências dramaticamente penosas e não obstante vividas como únicas. Ou seja, a pessoa sofre com o caráter invasivo de uma crença que ela não consegue negar e que se impõe a ela de modo coercitivo, por isso, muitas vezes ela se associa com outros por meio de narrativas que permitem que suas ideias sejam escutadas e que sua experiência de vida seja compartilhada com outros.

Mas o que acontece quando delírios clínicos se relacionam com crenças abaladas ou inseguras de outros tipos?

Por exemplo, diante de uma experiência como a covid-19, muita incerteza precedeu a formação de algum conhecimento científico sobre o funcionamento do vírus, seu mecanismo de transmissão e periculosidade, as estratégias de tratamento, remanescendo ainda muitas questões incógnitas. Contudo, é muito difícil permanecer sem repostas quando a matéria pode representar uma diferença entre vida ou morte, física, econômica ou moral.

A incerteza cansa, desorienta e ataca as estruturas de proteção que cultivamos, ainda que ilusoriamente. A incerteza é particularmente nociva para formas de autoridade e de poder. Refratárias a experiências de indeterminação, cuja expressão mais comum é a ideia de liberdade, estas tenderão a interpretar a falta de sentido como exclusão e segredo, reproduzindo a ordem de hierarquia na qual acreditam existir no mundo. A tentação é de reduzir a ausência de sentido à existência de um plano superior quando a narrativa for capaz de juntar e solucionar vários pontos sem resposta.

Por exemplo:

A vacina contra covid é apenas parte do plano pelo qual os chineses pretendem adquirir controle sobre os corpos das pessoas injetando nanorrobôs em suas correntes sanguíneas. A verdade é que estes robôs extraem de cada um uma substância desconhecida chamada cromaquina, que é a fonte de poder que os chineses usarão para derrotar os Estados Unidos em uma guerra mundial. Esta substância é rara e pode ser obtida quando temos crianças em estado de sofrimento. Isso explica porque tantas crianças estão sendo raptadas e levadas para cavernas que existem no subsolo da Amazônia. Lá elas estariam sendo torturadas explicando porque tantas queimadas e porque tanta preocupação com aquela região do Brasil."

Esta teoria delirante vem encontrando cada vez mais adeptos na internet e o leitor poderá perceber quantas coisas ela integra explicativamente para as pessoas: guerra econômica entre China e EUA, medicamentos controversos que terminam em "quina", a existência de crianças vítimas de violência, as queimadas, a controvérsia das vacinas, de repente tudo começa a fazer sentido.

Criança observa pela janela - Guilherme Rossi/ Pexels - Guilherme Rossi/ Pexels
Imagem: Guilherme Rossi/ Pexels

Mas ainda assim não se obtém o mesmo efeito de certeza e convicção de um verdadeiro delírio clínico. Ao contrário dos delírios clínicos que tendem a isolar a pessoa, o "negacionismo por procuração", derivado da autoridade fragilizada ou desamparo diante do mundo, precisam se expandir com a adesão de novos adeptos. Afinal, o critério da incerteza remanescente é tratado com o aumento do número de pessoas que compartilham a crença. Como se pelo fato do assunto ser indecidido, ganha quem tem mais membros votantes.

Entra em cena aqui um terceiro tipo de negacionismo, ou seja, aquele representado por um grupo bastante extenso de pessoas até então excluídas do debate político e historicamente minorizadas quanto ao uso da palavra e expressão de opiniões. Estes se veem repentinamente valorizados pela linguagem digital que promete um valor de existência digital, decorrente de sua capacidade de aglutinação de views, mas também por aqueles que querem reconstituir formas regressivas de autoridade e sentido.

O "negacionismo por adesão" acaba sendo pragmaticamente justificado ao se apoiar em duas constatações. Lembremos que quem nega alguma coisa precisa supor uma afirmação anterior para ser negada. Ora, no caso das pessoas que se encontravam sistematicamente afastadas de qualquer tomada de opinião ou uso público da palavra, a afirmação envolvia a suposição de que pessoas "informadas" possuem um conhecimento desinteressado, que não se liga com o desejo, nem com a posição de classe, gênero ou raça. Um conhecimento deste tipo deveria estar disposto a oferecer todas as respostas que escapam aos comuns mortais.

O "negacionismo por adesão", no fundo, exagera estas duas condições, denunciando que as instituições têm interesses e que ao mesmo tempo elas não têm todas as repostas que supostamente deveriam ter para justificar o poder que pretendem exercer.

Vemos assim que uma parte importante do negacionismo brasileiro contemporâneo envolve o ressentimento por nunca ter tido voz e pela forma como posições exageradas, denunciativas ou excessivamente críticas são parte de um pedido de reconhecimento para participar da conversa em condições de maior igualdade.

O quarto tipo de negacionismo pode combinar elementos dos três anteriores, mas ele se caracteriza pelo efeito de reconhecimento gerado por estarmos negando um elemento comum. Nos tornamos irmãos menos pelas afinidades imediatas e diretas, inclusive pela adesão a conteúdos delirantes, e mais porque neste movimento nos opomos ao mesmo inimigo.

As razões, motivos ou causas não importam tanto, desde que estejamos indo para o mesmo lugar, ou melhor, desde que não estejamos indo para aquele mesmo lugar.

Close de olhos - sipa/ Pixabay - sipa/ Pixabay
Imagem: sipa/ Pixabay

Surge aqui outra solução para o problema da perda de referência simbólica de autoridade. Podemos não saber o que queremos, mas nos unimos em torno do que não queremos.

Este tipo de "negacionismo reativo" tem agora um problema adicional para enfrentar: como ser reconhecido sem reconhecer as regras do jogo do qual se quer participar? Como traduzir valores, muitas vezes emergentes do universo familiar tradicional e de novas formas religiosas emergentes, sem dissolver a coesão grupal e o efeito de identidade que se obtém em torno da negação comum de um inimigo comum?

Em seu texto clássico sobre a negação [1], Freud separa a negação em dois tipos de juízo, os de existência e os de valor.

Podemos separar os negacionismos contemporâneos entre aqueles que se apoiam na negação factual, que pode ser refutada por critérios de checagem e os que se apoiam em negação de juízos de valor, muito mais difíceis de serem criticados. Para tanto é preciso ter em mente que a negação tem uma função libidinal nestas, por isso sua prática vem acompanhada da mobilização de paixões.

Ainda desse texto é conhecida o famoso exemplo do sujeito que sonha com uma mulher e que logo comunica ao seu analista: "não sei de nada, mas tenho certeza de que esta mulher em meu sonho não é minha mãe". Ou seja, a negação intensa, fora de contexto adversativo (quem teria dito que era?) e precedida por uma declaração de ignorância são sinais deste tipo de negação, também chamada de denegação (Verneinung).

A denegação é mais característica do negacionismo reativo e do negacionismo por adesão, o que nos leva a supor que elas são formas intermediárias da admissão de algo. Ou seja, na luta psíquica entre admitir algo e não querer saber, a denegação reconhece a ideia no pré-consciente, mas introduz um "não" que livra o sujeito daquilo que ainda o atemoriza.

Quando a criança começa a aprender os poderes da negação, ela insiste com seus pais para que lhe apresentem razões para tudo. A fase dos porquês é a descoberta de que é possível afirmar-se negando a totalidade do saber do outro, mas ao mesmo tempo acreditando nele.

Ela é reeditada na adolescência quando o sujeito começa a afirmar teses improváveis apenas pelo gosto de ver os adultos se esforçarem para negá-las, certificando-se assim de que são membros desta classe de pessoas, que se afirma pelo uso da própria palavra. É o momento no qual os adultos tornam-se o inimigo comum a ser batido.

Mais adiante nos tornamos ressentidos porque nossas antigas convicções envelheceram e não são mais aceitas com a mesma autoridade de antes.

Com exceção do negacionismo clínico, que como vimos não é exatamente uma negação, mas uma impossibilidade de negar, os negacionismos por procuração, por adesão e por reação, acima reunidos, são apenas formas exageradas de momentos pelos quais todos nós passamos, ainda que alguns teimem em fixar-se indefinidamente.

REFERÊNCIA

[1] Freud, S. (1925) A Negação. São Paulo: Cosacnaify: 2014.