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Blog do Dunker

O que você vai descobrir sobre seu lado mau assistindo a "Breaking Bad"

Jesse Pinkman (Aaron Paul), à esquerda, e Walter White (Bryan Cranston) em cena de Breaking Bad - Divulgação
Jesse Pinkman (Aaron Paul), à esquerda, e Walter White (Bryan Cranston) em cena de Breaking Bad Imagem: Divulgação

25/09/2020 04h00

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Desde a antiguidade discute-se a relação entre a introdução de novas técnicas e a expansão do que consideramos maldade.

Não é por outro motivo, por exemplo, que no juramento de Hipócrates, encontramos inúmeras clausulas que impedem seu uso para a consecução do mal "ainda que o paciente nos peça".

Podemos atribuir o fenômeno ao fato de que uma verdadeira técnica cria uma espécie de poder impessoal, que pode ser transferido e multiplicado de forma independente ou relativamente autônoma em relação ao sistema de autoridades locais.

Foi assim no início do século 20, durante a Revolta da Vacina, quando muitos moradores dos morros cariocas se insurgiram contra o Estado que queria "inocular algo" dentro dos corpos de "nossas" mulheres e crianças.

Mas o argumento mais recorrente, quando se trata da seletividade moral com a qual aderimos a tecnologia, diz respeito ao fato de que ela pode desequilibrar o sistema de poder de uma dada comunidade, família ou nação. Ela pode, por exemplo, aposentar rapidamente alguns, descartar outros e elevar terceiros e quartos a carreiras meteóricas de ascensão social. Mas até que ponto este domínio da técnica realmente transforma as pessoas?

Este é certamente um dos tópicos que fizeram da série "Breaking Bad", um grande sucesso ao longo de suas cinco temporadas (2008-2013), nas quais Walter White torna-se gradativamente mau.

A graça da série depende em grande medida de como nós mesmos vamos nos dando conta e revendo nossas interpretações sobre a progressão da maldade de White, aliás, uma alusão perfeita ao poder branco e a dificuldade de encontrar seu ponto exato de visibilidade na cultura.

A série tensiona nossa identificação com Walt —pacato professor de química, acometido por um câncer terminal, com um filho sofrendo com efeitos de uma paralisia cerebral e uma filha recém-nascida— e nosso desejo de punir Heisenberg —o "cozinheiro" da melhor metanfetamina do mercado, capaz de destruir competidores, deixar morrer a jovem Jane, envenenar (talvez) uma criança, manipular seu auxiliar Jesse Pinkman e enriquecer graças a golpes contra Gus e seu crescente poder no universo das drogas. Lembremos Werner Heisenberg (1901-1976), um dos físicos que inauguram a mecânica quântica ao descrever as formas alotrópicas do hidrogênio e depois ao estabelecer o teorema de que não podemos conhecer ao mesmo tempo posição e velocidade de um elétron.

Ou seja, um certo princípio de indeterminação governa os dois lados do nosso personagem, fazendo com que a nossa própria perspectiva seja essencial para determinar quando e como Walter tornou-se realmente mau.

No famoso episódio da "mosca", no qual Walter declara que ele deveria ter morrido em um dado momento da história, para que sua imagem de bom pai que se sacrifica a ponto de tornar-se um comerciante de drogas, pudesse ser realizada. Ou seja, ele está buscando nossa identificação por meio da teoria de que as pessoas vão se tornando más quando cedem as circunstâncias de suas vidas a ponto de entregar sua alma em um pacto que termina por destruir a sua própria essência.

Ele faz isso colocando nosso ponto de vista na perspectiva da mosca, de onde o episódio é filmado. Enquanto ele caça a mosca, ou seja, nosso próprio olhar movente, inseto que poderia contaminar toda a produção, ele refaz sua biografia e examina suas decisões, exatamente como esperamos dos sujeitos éticos mais elevados, e não dos vilões monomaníacos, dominados pela sede de poder ou vingança.

Mas o fato é que Walter não morreu de câncer, nem finalizou sua história naquele ponto em que tudo teria dado certo. Ele foi em frente, o que levanta em nós uma mudança de perspectiva quanto à teoria do mal: será que ele era, desde o início, um malvado contumaz, um ressentido, que aproveitou as circunstâncias em que sua vida passou a valer pouco, para deixar aflorar o pior de si?

O domínio da tecnologia em Walter White é duplo: um químico brilhante, capaz de manipular fórmulas e substâncias, assim como manejar versões de si mesmo e de calcular as reações que quer despertar em seus amigos e antagonistas.

Por isso todos os personagens são, no fundo, versões duplicadas e reduplicadas de Walter White.

Skyler, a esposa dedicada, que está sempre a alertar sua consciência e a lembrá-lo dos compromissos assumidos, é o oposto necessário, a voz da consciência do próprio Walter, a voz que ele nunca denega, mas tenta conciliar, com a retórica de que suas infrações e ausências são feitas para ela e para as crianças, ou seja, que as coisas não são o que parecem, que ela precisa compreender e ver a perspectiva de longo prazo, no qual os meios incorretos de agora realizarão os fins futuros, que ambos desejam.

Se Skyler é o oposto necessário para que Walter seja Walter, seu inverso do oposto, o seu contrário do contrário é Marie, irmã de Skyler, ambiciosa, cleptomaníaca, disposta a transgredir doentiamente as regras para enaltecer sua imagem. Exatamente como o Walter White que está diante de nossos olhos, mas que não queremos reconhecer.

A mesma fórmula se aplica a Flynn, seu filho nada brilhante, extensão de seu amor familiar piedoso mas cujo tratamento está arruinando sua economia.

Breaking Bad - Reprodução/AMC - Reprodução/AMC
Imagem: Reprodução/AMC

O inverso do oposto de Walter é naturalmente Jesse Pinkman, seu aluno medíocre, dependente químico, que se torna parceiro de "cozinha", a quem ele manipula "sem piedade" e que nos impede de ver que objetivamente o "grande" pai Walter não está presente nos aniversários, não se envolve realmente com Walter Jr., não compartilha seu carro novo, nem o momento inaugural de sua direção, chegando a trocar o seu nome pelo de Jesse quando seu filho o leva para a cama.

Este truque pelo qual vamos deixando de perceber a maldade onde ela está, acontece uma terceira vez se examinamos nosso sistema de identificações à luz da oposição inicial entre Hank, o cunhado "macho alfa", policial exibicionista que está a cada festa se vangloriando em cima de Walter.

O oposto necessário que vamos ver aparecer no orgulhoso Heisenberg, em sua luta contra o oposto do oposto, ou seja, Gus, o traficante líder, inteligente, sóbrio e calculista, que Walter odeia justamente porque é a sua própria imagem invejada no outro (assim como Hank, no universo familiar).

Ao final e ao cabo Walter White é a trajetória banal daquele que se torna exatamente aquele a quem ele odeia, mostrando o quanto seu ódio era composto de ciúme, despeito e inveja.

Mas a forma como esta trajetória é mostrada não é nada banal, pois ela faz o espectador compensar os vacilos do "bom Walter" com o reconhecimento de nosso próprio desejo maligno, que será novamente recalcado pela adesão subjetiva à continuidade da série. É como se começássemos a nos enganar, por livre e espontânea vontade, com a promessa de que no final, mas só no final-final, tudo se revelará e veremos que Walter era ... bom (como nós mesmos em nossa identificação com ele).

A fórmula narrativa original em "Breaking Bad", explora o antigo paradoxo da quantidade, que entra em cena frequentemente quando o assunto é tecnologia. Exemplifiquemos o paradoxo: se eu perder um fio de cabelo isso não me tornará um careca, certo? Mas e se eu perder dois fios? Acho que também não. Mas se eu tiver uma série sucessiva de perdas de cabelo (aliás como vem acontecendo) cedo ou tarde me tornarei um careca. Todos sabemos disso, mas quanto fios eu terei que perder até chegar lá? Em outras palavras, quantos grãos exatos de areia eu preciso ter diante de mim um monte de areia?

Repliquem agora o problema para: quantas horas de videogame, de smartphone ou tela de computador são realmente toleráveis antes de...

Ora, este ponto indiscernível, mas ainda assim real, é também um ponto covariante com nossas estruturas de ficção, da qual estamos falando nesta coluna há algum tempo. Este é o ponto no qual deixamos de perceber os atos de Walter White como altruísta em busca de tratamento para seu filho, e passamos a vê-lo como um egoísta atrás de enriquecimento ilícito, como aliás ele acaba confessando para Skyler: "fiz tudo por mim".

Mas a graça é que ele viola a estrutura circular conhecida como jornada do herói, pela qual alguém sai de seu mundo comum, recebendo um chamado, passando por provas e misturando-se com vilões, para retornar a si, depois da provação e do recolhimento, para encontrar-se finalmente com si mesmo, em uma experiência de salvação marcada pelo autoconhecimento (ainda que se trate de um vilão).

Não é nada disso em "Breaking Bad", pois não se trata de um retorno circular ao ponto de partida, mas de uma elipse de indeterminação, pois mesmo depois da confissão para Skyler, ergue-se a dúvida: mas não seria isso apenas uma maneira de dizer para ela o que ela queria ouvir, de modo a marcar o ponto de despedida que ele queria?

O que temos aqui é justamente uma mutação da qualidade de nossa identificação. Se na tradicional jornada do herói nossa identificação acontece em relação aos traços de pertinência que vamos acumulando, ao modo de qualidades e predicados que gostaríamos de ter, na jornada elíptica de "Breaking Bad", nosso sistema de identificações vai migrando dos traços, bons ou maus, que nele reconhecemos, para uma identificação com o próprio processo transformativo.

Identificações antipredicativas ou transformacionais nos ligam ao processo, ao desejo ou ao modo como nos sentimos nos transformando na medida mesma em que ajustamos narrativamente os atos contraditórios do protagonista. Isso significa que ele não está se torno mais "humano" na medida que combina aspectos bons e maus, mas que ele questiona, ainda que indiretamente a soberania da identidade no processo de identificação.