Por que estudiosos do Holocausto são contra 'O Menino do Pijama Listrado'?

"O Menino do Pijama Listrado" foi escrito por John Boyne em 2006 e, ao focar na história de dois garotos que se conhecem durante o Holocausto, ficou mundialmente famoso, com mais de sete milhões de cópias vendidas. Dois anos depois de seu lançamento, um filme homônimo chegou aos cinemas.

Atenção: spoilers de "O Menino do Pijama Listrado"!

A narrativa do drama acompanha Bruno, o filho de um oficial nazista que mora perto do campo de concentração de Auschwitz, e Shmuel, um menino judeu preso no local. Os meninos se tornam amigos por entre as grades do campo de extermínio, se aproximam e criam um laço de amizade. A inocência e companheirismo, porém, os levam a uma mortal consequência.

'O Menino do Pijama Listrado' é um filme que emociona, faz chorar. Isso não é exatamente um mérito do enredo. Envolve, afinal, a morte de crianças, referenciando um evento histórico traumático e triste que assassinou milhões de pessoas inocentes, entre elas ao menos 1,5 milhão de crianças. O filme tem, então, forte apelo emocional, mesmo que com um roteiro extremamente raso.
Júlia Amaral, colaborada do Instituto Brasil Israel e doutoranda em história social da UFRJ, em entrevista a Splash

A obra de ficção foi muito bem recebida pelo público, com 85% de aprovação do filme no Rotten Tomatos (agregador online de críticas). Passados 15 anos, tanto a produção cinematográfica, quanto a literária, se tornaram um meio de contar a história do Holocausto.

Segundo a associação britânica Holocaust Centre North, escolas no Reino Unido usam o livro como uma ferramenta para ensinar sobre o Holocausto nas aulas de história e de inglês. No Brasil, o vestibular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) coloca "O Menino do Pijama Listrado" como obra obrigatória para ingressar na instituição em 2024.

Asa Butterfield interpreta Bruno em 'O Menino do Pijama Listrado'
Asa Butterfield interpreta Bruno em 'O Menino do Pijama Listrado' Imagem: Divulgação

Quais são as críticas?

Segundo o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, Carlos Reiss, uma crítica envolvendo a obra é seu uso educativo. "A venda de milhões de cópias do livro em todo o mundo o transformou em referência para a representação da Shoá [Holocasuto], utilizada por educadores para trabalhar o tema histórico. Não pode ser este o sentido de usar 'O Menino do Pijama Listrado' em sala de aula."

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Ele está longe de ser a melhor alternativa para ilustrar, materializar ou reapresentar a dimensão do Holocausto para o jovem. É pobre, referencialmente, não-ilustrativo e funciona apenas no campo da literatura.
Carlos Reiss

Outra reclamação tem relação com o final da obra, quando Bruno entra em Auschwitz por um buraco feito no chão, por baixo da cerca, e se camufla com o "pijama listrado" usado pelos judeus. Os dois não entendem a gravidade do que estão vivendo dentro do campo de concentração. Eles recebem ordens para se juntar a outros prisioneiros e entram em uma câmara de gás. A porta do local se fecha e dá para entender que os amigos morreram.

No filme, o personagem principal é Bruno. Conhecemos sua personalidade, sua família e nos identificamos com ele; enquanto Shmuel e outros judeus do campo são apenas vítimas: sem personalidade, características ou qualquer força. Quando os dois meninos morrem, é com a família nazista que o filme cria empatia, e não com as reais vítimas do genocídio.
Júlia Amaral

Na obra, Bruno é filho de um oficial nazista e faz amizade com Shmuel, uma vítima do Holocausto
Na obra, Bruno é filho de um oficial nazista e faz amizade com Shmuel, uma vítima do Holocausto Imagem: Divulgação / Miramax Films

Estudiosos apontam três grandes inconsistências históricas

A presença de Shmuel em Auschwitz. "A primeira seria a baixíssima probabilidade de que um menino judeu, chegando no campo ainda criança e, portanto, sem condição de trabalhar, não fosse imediatamente mandado para a morte", explica Júlia Amaral.

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Ainda que por algum motivo uma criança ficasse viva após a 'seleção', para servir de cobaia para experimentos médicos ou cumprir alguma outra tarefa, a chance de que ele tivesse tempo livre para fazer amizade com alguém de fora do campo como acontece no filme é remota.
Júlia Amaral

A questão da cerca. "Em segundo lugar, muitos apontaram para a irrealidade da própria cerca que separa Shmuel, o menino preso no campo, e Bruno, seu amigo de fora. Na realidade, os campos de concentração e extermínio tinham cercas eletrificadas, e super vigiadas, muitas vezes duplas, para impedir a fuga das pessoas ali confinadas. No filme, não só o contato entre os meninos é intenso, mas um menino de nove anos cava um buraco para entrar no campo."

A falta de conhecimento. "Por último, estaria a inocência de Bruno, que não sabe o que está acontecendo ali, quem são os judeus ou os nazistas. O personagem era filho de um oficial nazista de alto escalão, e dificilmente, apontam os críticos, não estaria há muito em contato com a intensa propaganda antissemita e a construção da imagem de Hitler e dos nazistas, inclusive na Juventude Hitlerista, instituição obrigatória para crianças alemãs a partir dos 6 anos."

Capa do livro 'O menino do pijama listrado'
Capa do livro 'O menino do pijama listrado' Imagem: Divulgação

Não é educativo

Para além da discrepância com a realidade, Carlos Reiss aponta que a obra não pode ser usada como recurso de educação a crianças, pois, não deve ser considerado um filme infantil. O trágico desfecho final dos amigos não ajudaria no processo de "transmissão de lições e princípios ligados ao Holocausto".

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Ele choca, traumatiza, destrói qualquer resquício de valores que a história possa ter plantado. Não tem qualquer função educativa.
Carlos Reiss

Instituições como o Yad Vashem, em Jerusalém, e o próprio Museu do Holocausto de Curitiba, aconselham que apenas obras baseadas em histórias de sobreviventes sejam usadas para educar crianças menores de 12 anos.

É uma produção kitsch, em seu conceito mais clássico: melodramática, sensacionalista e repleta de chavões. Conta, por isso, com a simpatia de um público mediano. Prende a atenção e parece profunda, mas não é. Como uma 'Galinha Pintadinha': chamativa, quase hipnótica, aparentemente rica, porém vazia.
Carlos Reiss

"O Menino do Pijama Listrado" é acusado de perpetuar também o conceito de passividade das vítimas e a alienação da população civil; mitos estes reforçados pela narrativa. "Na verdade, sabemos que diversos tipos de movimentos de resistência aconteceram fora e dentro dos campos, inclusive em Auschwitz", explica Amaral.

Ficção x Realidade

Mesmo com todas as polêmicas, "O Menino do Pijama Listrado" é uma obra de ficção e, portanto, não tem obrigação com a realidade.

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Um filme ficcional não precisa e nunca será fiel à história real. Vamos lembrar que não existe essa obrigação, e nem deve, porque isso seria uma forma de poda da liberdade criativa.
Franthiesco Ballerini, crítico de cinema e autor do livro 'História do Cinema Mundial', em conversa com Splash

Para Ballerini, não é possível usar esta produção como um documento histórico. No entanto, dada a qualidade cinematográfica do longa, há o risco dos espectadores distorcerem a realidade. "Quando um filme é muito bem produzido, muito bem ambientado e usa questões reais, como a Segunda Guerra Mundial, ele acaba gerando essa confusão na cabeça de muita gente que acha que aquilo aconteceu."

Qual a saída?

A discussão de como lidar com uma obra de ficção que conta com fatos históricos há uma solução definitiva. "Não existe uma fórmula, não existe uma maneira apenas de tratar desse assunto no cinema e no audiovisual."

Uma saída, para o crítico de cinema, seria utilizar uma espécie de aviso no início das obras no qual explique que não se trata da verdade, como já é feito em algumas produções. Porém, isso poderia afastar espectadores.

"Não é de interesse dos produtores fazer isso, justamente porque existe um apego e um interesse dessas produções de fisgar o público com histórias de panos de fundo reais. É o que acontece com a Segunda Guerra Mundial, porque as pessoas se interessam pelo assunto e acham que aquilo tudo que estão assistindo é a realidade", conclui Ballerini.

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