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Religião com funk, estupro, casal gay: 'Vai na Fé' não teve medo de ousar

Demorou para a Globo acenar aos evangélicos e criar personagens sem estereótipos em uma novela. A missão foi realizada com sucesso por Rosane Svartman, a autora de "Vai na Fé", sua protagonista Sol (Sheron Menezzes) e sua família preta.

A protagonista, uma mulher periférica, religiosa e real, tinha o sonho de seguir carreira artística, algo adormecido da época em que era adolescente e frequentava baile funk. Quem pensaria em uma mocinha evangélica com sonho de se tornar pop star?

Rosane, em conversa com Splash antes da estreia, pediu para que os telespectadores assistissem à trama antes de fazer julgamentos. "A gente está fazendo com carinho e respeito. Não queremos ofender ninguém. É o espectador que vai olhar o conteúdo, se identificar ou não."

E deu certo. A narrativa, que poderia causar problemas por cruzar religião e funk, superou as desconfianças iniciais dos evangélicos e se cravou como maior audiência da faixa nos últimos anos. A história vai fechar com 23 pontos de média na Grande São Paulo, segundo dados do Kantar Ibope, superando "Quanto Mais Vida, Melhor" (20,5) e "Cara e Coragem" (21). Um ponto representa 76.953 domicílios ou 206.674 indivíduos.

Sheron Menezzes, Bella Campos, Elisa Lucinda, Manu Estevão e Che Moais formam família em 'Vai na Fé'
Sheron Menezzes, Bella Campos, Elisa Lucinda, Manu Estevão e Che Moais formam família em 'Vai na Fé' Imagem: Globo/João Miguel Júnior

"Vai na Fé" também subverteu a lógica de que as novelas das sete podem surfar apenas na comédia, sem apostar no drama. Na segunda metade da trama, um tema rondou boa parte da narrativa: o estupro de vulnerável que Sol sofreu na adolescência, além de outros abusos de Theo — o responsável pelo vilão, o ator Emilio Dantas cumpriu bem o seu papel, ser odiado pelo sofá.

Para muitos, o assunto consumiu muito tempo de tela da novela e despertou gatilhos. Mas é inevitável que cumpriu um importante papel social: alertar que nem sempre é fácil denunciar abusadores, seja pela dor das vítimas, ou pela morosidade do judiciário. Apesar do tema difícil, roteiro, direção e atuação de Sheron Menezzes, Clara Moneke, Carolina Dieckmann e Carla Cristina Cardoso foram elogiadas.

Em uma novela com 70% do elenco negro, também foi um acerto mostrar personagens para além do racismo, tocado pontualmente pela trama. Afinal, em um país marcado pelo racismo estrutural, ignorar o tema não seria solução. Os dilemas de Yuri (Jean Paulo Campos) deixaram claro como a cor da pele pode ser decisivo para um jovem ser preso.

"Vai na Fé" ainda inovou por ter um quê musical desde o início com o personagem de José Loreto. O carismático Lui Lorenzo, aliás, fez sucesso fora da trama com suas músicas e o tradicional "vamos". Sol, no finzinho da trama, também soltou a voz e realizou o sonho de adolescência. Suas canções estão disponíveis nas plataformas de streaming.

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Rosane, autora da primeira série musical do Globoplay, "Vicky e a Musa", foi além. Ela introduziu performances musicais dentro das cenas do dia a dia, bem-parecido com filmes do gênero, nos últimos meses de exibição. É certo que o resultado não foi unanimidade. Muita cantoria desagradou parte dos telespectadores que comentam no Twitter. Mas, na altura do campeonato, Rosane acertou em arriscar porque sabia que colocar esse mecanismo pouco usado nas novelas não comprometeria o desempenho geral da trama.

Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) em "Vai na Fé"
Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) em "Vai na Fé" Imagem: Reprodução/TV Globo

Linha tênue

O casal Clara e Helena foi um dos mais shippados pelas redes sociais. O romance lésbico trouxe representatividade LGBT ao horário das sete, sem estar atrelado à comédia, o que é ótimo. Pelo contrário, Regiane Alves e Priscila Sztejnman dividiram (poucas) cenas românticas e delicadas. Yuri e Vini (Guthierry Sotero) também viveram um leve affair, antes de Yuri engatar romance com Guiga (Mel Maia).

O deslize de "Vai na Fé" esteve na execução desses romances. E boa parte dessa culpa está na emissora. Cenas homoafetivas foram escritas pelos roteiristas, encenadas pelos atores, mas cortadas pela alta cúpula da emissora. Após muita pressão, a primeira cena de beijo entre Yuri e Vini só aconteceu em 16 de junho, enquanto o beijo entre Clara e Helena ocorreu cinco dias depois.

Experiências LGBTs em "Vai na Fé" são um acerto, mas o desempenho dessa representatividade nmostra que ainda é preciso mais. Apesar do deslize, a trama de 179 capítulos termina com saldo positivo. Foi ousada sem medo das eventuais críticas e falhas pelo caminho. "Vai na Fé" marca a história recente da televisão brasileira.

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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