Topo

Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O sublime 'Drive my Car' retrata, sem atalhos, uma longa jornada emocional

Colunista do UOL

17/03/2022 06h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

"Drive my Car" é um filme ancorado na dor angustiante da perda, e como cada pessoa experimenta e lida com esse turbilhão de sentimentos não só à sua maneira, mas também em seu ritmo. O filme de Ryusuke Hamaguchi explora, em meticulosas três horas, a riqueza dessa jornada emocional sem atalhos e sem pressa. Mais ou menos como a vida nos impõe.

Baseado em um conto de Haruki Murakami, um dos oito publicados em 2014 na antologia "Homens Sem Mulheres", "Drive my Car" amarra uma coleção de momentos em um período na vida de um ator e diretor teatral que, após a morte inesperada de sua mulher, perpetua um semblante de existência assombrado por segredos que ela nunca teve a chance de compartilhar.

O diretor é Yusuke Kafuko (o espetacular Hidetoshi Nishijima, que em três décadas de carreira já experimentou todos os cantos de seu ofício), que dois anos depois de encontrar sua mulher morta em casa ao retornar de uma viagem de trabalho, é convidado para dirigir em Hiroshima uma montagem da peça "Tio Vânia", do dramaturgo russo Anton Chekhov.

drivecar car - MUBI - MUBI
Kafuko, Misaki e o Saab 900 vermelho, seu casulo em 'Drive my Car'
Imagem: MUBI

A produção insiste que ele tenha um motorista ao longo de todo o trabalho, e Kafuko relutantemente aceita a presença da jovem Misaki Watari (Tôko Miura) ao volante de seu Saab 900, um clássico dos anos 1980, que pinta a aridez das paisagens japonesas com sua cor vermelha. A hesitação é compreensível: isolado do mundo, Kafuko só consegue experimentar recortes da vida quando dirige, uma liberdade que é, ao mesmo tempo, um casulo.

A montagem da peça - o teatro e sua divisão narrativa em atos são fundamentais para a trama de "Drive my Car" - é o momento de Kafuko trabalhar com um jovem ator, Kôji Takasuki, que ele desconfia ter sido amante de sua mulher - ela mesma uma escritora que narrava suas histórias ao marido depois do sexo, um ritual que ele desconfia não ter sido o único protagonista.

Todos os personagens lentamente despem-se de seus segredos, em especial Kafuko e Misaki. Em suas longas viagens de carro, eles desenvolvem uma conexão que os levará ao passado e ajudará a fechar as feridas que atormentam seu futuro. Em alguns momentos sua dinâmica lembra "Uma Noite Sobre a Terra", de Jim Jarmusch, em que passageiros e motoristas de táxi não encontram função para o silêncio.

Para desenhar sua narrativa, Hamaguchi uma um elemento muitas vezes menosprezado no cinema: o tempo. Não em sua forma abstrata, ou mesmo contado em um relógio, mas como presença intensa e dominadora, como um guia de passos incertos.

O ritmo lento e a longa metragem de "Drive my Car", longe de buscar contemplação ou de ser um capricho auto indulgente de seu realizador, são uma ferramenta para envolver o público de forma que eu nunca vi antes.

É o tempo sendo usado para que metáforas e alegorias criem raízes. Para que cada personagem seja desconstruído e, depois, compreendido em sua totalidade. É como se nossa atenção fosse primeiro exigida, depois lentamente normalizada ao longo da história, aumentando o impacto do conflito quando ele inevitavelmente explode porque, até lá, sabemos exatamente quem é quem.

drivecar ator - MUBI - MUBI
Kôji Takasuki e Hidetoshi Nishijima trocam confidências que machucam
Imagem: MUBI

A forma como Hamaguchi estrutura seu filme faz parecer que as partes pareçam desconexas do todo. É uma maneira de amplificar o peso das revelações, seja nos diálogos entre personagens, seja na compreensão solitária de eventos passados. Nos ancoramos a cada pessoa em cena e a seus momentos, de maneira que outros filmes, mais alinhados com necessidades do cinema como produto, não permitem.

O ambiente colabora com nossa imersão. Sob as lentes de Hamaguchi, o Japão é uma terra opaca, em que tudo parece "vestir" um tom neutro, frio. O carro é a única constante, e é para ele que nossos olhos se voltam sempre que está em cena, mesmo no trânsito, quando todos os outros veículos alternam entre preto e branco. À medida que a trama avança e os conflitos de seus protagonistas são deflagrados, a cor timidamente preenche a tela.

A habilidade de Hamaguchi na direção é tamanha, seu domínio de cena tão preciso, que demoramos a perceber o quanto a trilha sonora do filme é sutil, o silêncio uma constante. Ou mesmo para nos darmos conta que seus primeiros 40 minutos são um prólogo, a construção de uma conexão com o personagem de Hidetoshi Nishijima. Somente nessa marca surgem os créditos de abertura.

drivecar neve - MUBI - MUBI
A paisagem se amplia quando o passado encara em 'Drive my Car'
Imagem: MUBI

"Drive my Car" é uma experiência a ser absorvida, uma obra que imprime importância a cada minuto com absolutamente nenhum desperdício. A sensação de intimidade é tamanha que nos vemos dentro do Saab 900, ouvindo em silêncio Kafuko e Misaki descobrir, juntos, a importância de encarar o passado para perdoar o presente e reconfigurar o futuro.

O reconhecimento da obra de Ryusuke Yamaguchi foi, honestamente, inevitável. Desde sua premiére durante o Festival de Cannes em 2021, "Drive my Car" vem recolhendo louros com sua construção visual sem firulas e com a complexidade de seu roteiro. É um filme único, uma experiência narrativa e emocional difícil de ser reproduzida - que estreia hoje no cinema e no começo de abril estará disponível na plataforma de streaming MUBI.

Não foi com surpresa, portanto, que o drama recebeu quatro indicações ao Oscar. Melhor filme e direção (duas categorias que não deve ganhar), melhor roteiro adaptado (foi uma de suas premiações em Cannes, não descarto uma estatueta aqui) e melhor filme internacional (Hamaguchi já pode reservar espaço na estante).

drivecar diretor - MUBI - MUBI
Ryusuke Hamaguchi é premiado em Cannes por seu roteiro em 'Drive my Car'
Imagem: MUBI

Em um ano que a rede ABC desfigura a festa do Oscar ao remover de sua transmissão ao vivo a entrega de oito prêmios técnicos - inclusive melhor montagem, a terceira parte fundamental de um filme! -, "Drive my Car", um filme japonês com três horas de duração, frustrou os executivos da TV ao encontrar espaço entre os dez indicados ao prêmio principal.

Muitos esperavam o reconhecimento de um blockbuster como "Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa" para trazer parte do público global que fez do filme um sucesso de US$ 2 bilhões. Não foi dessa vez. Entre os números de audiência de um programa de TV e a aclamação do poder transformador do cinema, "Drive my Car" mostra que, ao menos entre os votantes do Oscar, o segundo sempre será prioridade.