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O espetacular 'A Tragédia de Macbeth' é mais um show de Denzel Washington
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Quando perguntaram a Paul Thomas Anderson com que ator ele gostaria de trabalhar, o diretor de 'Boogie Nights' e 'Sangue Negro' não hesitou: Denzel Washington. É unanimidade. Poucos artistas na estratosfera hollywoodiana reúnem tantos predicados quanto ele. Menos ainda seguem tão versáteis, magnéticos e no auge de seu talento.
É espantoso, portanto, que Denzel consiga explorar ainda novas facetas neste "A Tragédia de Macbeth", adaptação de Joel Coen para a peça que Shakespeare concebeu há mais de quatro séculos. Em um filme superlativo de ponta a ponta, uma das experiências mais belas do cinema contemporâneo, é seu protagonista que brilha ainda mais intenso.
O trabalho de Shakespeare já foi adaptado, reinterpretado e revisto incontáveis vezes ao longo dos séculos. É ainda mais surpreendente, portanto, que a versão de Joel Coen surja tão impactante. Em seu primeiro trabalho sem seu irmão e parceiro, Ethan, o cineasta de "Fargo" e "Onde os Fracos Não Tem Vez" arquitetou uma visão em que forma e conteúdo são combinados em uma obra que só poderia existir como cinema.
"Macbeth" é uma história de traição, poder e loucura que traz forte em suas entrelinhas a ação corrosiva da ambição e da paranoia. O protagonista é o nobre que garante mais uma vitõria para Duncan, rei da Escócia. Ao voltar para casa do campo de batalha, acompanhado do amigo Banquo, ele é abordado por uma bruxa que lhe revela uma profecia: o rei lhe dará mais um título de nobreza, ele própria será o rei e a linhagem real que o seguirá não partirá dele, e sim da prole de Banquo.
Mesmo ignorando o que parecia ser os devaneios de uma louca, Macbeth de fato é agraciado com a regência da região de Cawdor. Ele escreve para sua esposa, Lady Macbeth, fala sobre a profecia e os dois por fim traçam um plano para assassinar o rei. Com a execução do ato vil, Macbeth herda a coroa mas torna-se um tirano paranoico, que briga com alucinações erguidas por sua própria culpa. O fim do casal, perdido entre poder e loucura, assinala a força das tragédias de Shakespeare.
A obra de William Shakespeare historicamente sempre abriu espaço para diferentes interpretações. Laurence Olivier e Kenneth Branagh deram visões distintas e irrepreeensíveis de clássicos como "Henrique V" e "Hamlet". Akira Kurosawa reinventou "Rei Lear" com cores vibrantes e tintas épicas em seu "Ran". O próprio "Macbeth" foi revisto incontáveis vezes, inclusive uma versão inigualável feita por Orson Welles em 1948.
Sob o olhar de Joel Coen, "A Tragédia de Macbeth" ressurge com ênfase no que a trama tem de mais precioso: seu texto. Longe de dourar e editar a prosa de Shakespeare com os artifícios do cinema épico evocado pela história, como cenas de batalha e recriação de época primorosa, como ocorre na versão de 2015 com Michael Fassbender e Marion Cotillard, Coen despe-se de toda a gordura para salientar as palavras.
Para isso, ele constrói um conceito visual em que cenários são reduzidos ao básico. Cenas no campo são espartanas, à exceção de um elemento que quebra o vazio, como uma árvore retorcida os os escombros de um casebre. No castelo de Macbeth, o mesmo rigor é traduzido na imponência de ângulos retos e locações sem adereços.
É curioso observar como Joen Coen busca, no passado, um caminho para reencontrar "Macbeth". A fotografia em preto e branco, realizada magistralmente por Bruno Delbonnel, traz ecos de Ingmar Bergman e F.W. Murnau em tomadas e enquadramentos.
Existe a clara inspiração do expressionismo alemão e do cinema de Fritz Lang. E há também uma alusão à era de ouro do cinema hollywoodiano: Assim como grandes clássicos do cinema de outrora, "A Tragédia de Macbeth" foi rodado inteiro em estúdio, em Los Angeles, e não esconde seu artificialismo.
Cada elemento existe como suporte ao texto, que segue como grande atrativo. A única concessão à concepção original de Shakespeare está em seus protagonistas. Macbeth e Lady Macbeth sucumbem à traição tecida pela profecia quando são jovens em uma tentativa de reescrever seu futuro.
A escolha de Denzel Washington e da magistral Frances McDormand, mulher do diretor e sua parceira no desenvolvimento do projeto, sugere um casal mais maduro, que o tempo não permite mais sonhar. Assim, seus atos ganham mais peso e urgência, sublinhando o desejo de deixar um legado.
Essa maturidade se reflete na interação de Denzel e Frances, que evocam à perfeição duas pessoas com décadas de familiaridade um com o outro, emprestando credibilidade às suas decisões. O esfarelamento de sua posição de poder, prevista na irrefreável profecia que dispara a trama, ressalta a tragédia de quem não tem mais o tempo a seu favor para redimir-se de suas próprias decisões.
Á frente de cada fotograma, comandando a trama, está Denzel Washington. Sem perder seu sotaque americano, ele empresta outra cadência às palavras de Shakespeare, um tom diferente, uma musicalidade que só um ator absolutamente seguro de sua arte é capaz de entregar.
Ao dominar cada centímetro do cenário, o ator cria um jogo de cena completo e hipnotizante com a câmera de Coen. Em especial nos closes, quando o preto e branco do cenário deixa sua concepção esfumaçada, seu foco difuso, para ganhar definição e um contraste vibrante.
Todo o elenco parece crescer ao lado de Denzel, de Brendan Gleeson como o Rei Duncan a Corey Hawkings como seu herdeiro, Macduff, passando por Kathryn Hunter (veterana do teatro que faz aqui um trabalho vocal e corporal absurdo como a bruxa da profecia), Alex Hassell e a própria Frances McDormand.
O que ele faz como Macbeth é quase sobrenatural, e é um prazer testemunhar um ator já tão laureado buscar desafios tão complexos e superá-los com tamanha habilidade. É, também, a prova que o trabalho de William Shakesperare segue, indubitavelmente, imortal.
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