Roberto Sadovski

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Opinião

'Guerra Civil' traz a realidade incômoda e violenta de um país esfarelado

"Que tipo de americano você é?" A cena está no trailer de "Guerra Civil". Jesse Plemons, assustador no limite do desconforto, enquadra um grupo de jornalistas, Kirsten Dunst e Wagner Moura à frente, sob a mira de um fuzil. Não existe resposta certa ou errada. Existe apenas a realidade de um país em frangalhos, travando um conflito que, ao instigar a violência em uma terra sem lei, faz emergir o pior do ser humano.

"Guerra Civil" é a distopia de uma América se devorando, filtrada pela lente do roteirista e diretor britânico Alex Garland. É, também, uma obra que teima em quebrar expectativas.

Em um momento crucial da história, em que a polarização ameaça sequestrar o debate democrático, o cineasta imaginou um cenário em que o pior já aconteceu. Seu filme não busca refletir sobre um conflito fictício, e sim sobre a experiência de viver esse conflito.

Ter jornalistas à frente da trama foi uma escolha feliz. Em vez de dividir a narrativa entre heróis e vilões, como se o mundo pudesse existir fora dos matizes do cinza, Garland coloca o foco na documentação a serviço da história. Assumir esse papel, o de testemunha da insensatez de um conflito armado, cobra um preço mais elevado quando a fumaça das ruínas ergue-se em sua própria casa.

Kirsten Dunst testemunha a história em 'Guerra Civil'
Kirsten Dunst testemunha a história em 'Guerra Civil' Imagem: Diamond

É o dilema que impulsiona a premiada fotógrafa de guerra Lee Smith (Kirsten Dunst, que vive grande fase em sua carreira). Calejada após uma carreira registrando desgraças causadas pelo homem, ela parece ter perdido a crença de que o jornalismo seja capaz de fazer alguma diferença.

Na cena de abertura, uma explosão que encerra como um baque surdo a tensão crescente entre soldados e uma população faminta, Lee sacode a poeira e, conformada em seu papel, aciona a câmera.

Uma conversa posterior com seu mentor, o veterano Sammy (o excepcional Stephen McKinley Henderson) desenha o estado das coisas. Os Estados Unidos são, nesse momento, governados por um déspota, um autocrata que insiste em pronunciamentos cheios de hipérboles, que seu lado obteve "grandes vitórias" e que o conflito se aproxima do fim com a rendição dos estados separatistas.

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A verdade, entretanto, é que ele se agarra em fragmentos e desinformação, já que as Forças Ocidentais, que combinam os estados da Califórnia e do Texas, disputam uma corrida com outros bolsões de resistência — a Aliança da Flórida, os Mórmons de Portland — para ver quem chega primeiro em Washington e extermina o presidente, uma figura patética interpretada por Nick Offerman.

Wagner Moura chega no limite em 'Guerra Civil'
Wagner Moura chega no limite em 'Guerra Civil' Imagem: Diamond

Acompanhada do repórter Joel (o espetacular Wagner Moura), que se energiza com a adrenalina da guerra, Lee quer partir de Nova York até a capital federal para assegurar uma última entrevista com o homúnculo no poder. É um plano extremamente arriscado, já que a estrada oferece todo risco imaginável em uma zona de guerra.

A situação complica quando não apenas Sammy se junta a eles, mas também a jovem fotógrafa Jessie (Cailee Spaeny), disposta a registrar um conflito para o qual ela não está preparada.

É na estrada que "Guerra Civil" revela suas cores. Na distância entre as duas cidades, expõem-se sem freios a condição humana e a futilidade da guerra. São corpos exibidos como troféus, cidades pulverizadas e abandonadas, campos perigosamente silenciosos e combatentes que, em certo momento, parecem lutar por puro instinto de sobrevivência ou pela imersão na crueldade estimulada por um cenário macabro.

Alex Garland, claramente inspirado por "Apocalypse Now", busca não romantizar a guerra, evitando construir recortes de ação vibrantes ou sedutores. Em vez disso, ele mostra pulso firme ao optar por um registro cru e progressivamente incômodo de uma descida irrefreável ao inferno.

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"Guerra Civil" é esperto ao intercalar cenas de extrema tensão com momentos de paz aparente, para finalmente abrir as cortinas e aumentar o volume do espetáculo.

Cailee Spaeny chega na linha de frente em 'Guerra Civil'
Cailee Spaeny chega na linha de frente em 'Guerra Civil' Imagem: Diamond

Mesmo com algumas tomadas aéreas para dimensionar a escala da guerra, sua câmera logo volta ao chão, acompanhando Dunst, Moura e Spaeny em um cenário com zero glamour, em que a máquina militar expande sua linha para alcançar seu objetivo.

A edição de som é brilhante, passando do incômodo físico da marcha de maquinário e artilharia ao silêncio que precede um passo seguinte mais decisivo. É cinema de primeira grandeza.

Se a escolha de jornalistas como protagonistas recupera o brio da profissão, especialmente com a função de testemunhas oculares da história, sua posição apolítica, embora esperta, não se sustenta.

A isenção profissional, de elemento passivo na história, encontra seu limite quando a balança moral pende para o lado de quem luta pela liberdade. O jornalismo, mesmo na ficção, ainda é a última trincheira da civilidade e da democracia.

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"Guerra Civil" é uma fantasia, por óbvio, mas uma fábula capilarizada na realidade em que a polarização elimina o debate politico, substituindo ideias por ódio, razão por intolerância.

Se não existe arte desassociada de política, também não há como não traçar um paralelo com o discurso defendido por Donald Trump, que busca uma reeleição nos EUA ao estimular de forma irresponsável o conflito doméstico. O que, ressalto, não é muito diferente dos derrotados que insistem com a mesma cartilha em nosso quintal.

Nick Offerman: em 'Guerra Civil', o presidente só não é laranja
Nick Offerman: em 'Guerra Civil', o presidente só não é laranja Imagem: Diamond

A força do cinema como objeto transformador reside em dramatizar temas que nos são familiares. Longe de ser uma lição de história, "Guerra Civil" não se preocupa com a causa da fragmentação institucional, não perde tempo com os porquês, e sim com suas consequências imediatamente reconhecíveis — medo e negação, euforia e instabilidade social. Milícias. Insegurança. Omissão. Morte.

O filme de Alex Garland incomoda ao estimular perguntas e sugerir respostas que ninguém quer ouvir. "O quanto estamos de fato próximos dessa realidade?" "O que acontece quando a autointitulada maior democracia do planeta cede sob seu próprio peso?"... ou "Que tipo de americano é você?" Desconfortável e irresistível, "Guerra Civil" desponta como um dos grandes filmes do ano.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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