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Roberto Sadovski

'Duna' ganha trailer: É OK se empolgar com a promessa de cinema no cinema

Colunista do UOL

10/09/2020 14h08

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Ficar empolgado com o trailer de um novo filme, neste 2020 que parece um eterno mês de agosto, parece trazer uma parcela enorme de culpa. Mas é inevitável - tanto a culpa quanto a empolgação! A arte, afinal, é o que ainda traz um certo alento nestes tempos estranhos, de governos ausentes, inverdades como notícia e futuro incerto. O primeiro trailer da adaptação de Denis Villeneuve para "Duna", enche os olhos com sua beleza estonteante, o tipo de experiência que merece ser compartilhada em um cinema com a maior tela e o melhor som possíveis. Mesmo que seja incerto quando isso vá acontecer.

Fiquemos, portanto, com a promessa apontada por Villeneuve. "Duna", para os não iniciados, é provavelmente a maior obra de ficção científica da história. O livro de Frank Herbert, lançado em 1965, leva para o futuro distante uma sociedade feudal em que famílias de linhagem nobre exercem controle sobre diferentes planetas. A trama é centrada em Paul Atreides, cuja família controla o planeta Arrakis, tão inóspito quanto fundamental para a produção da substância que estende as capacidades cognitivas de quem a usa, também garantindo longevidade e supremacia em um delicado equilíbrio político, religioso e tecnológico.

duna josh - Warner - Warner
Josh Brolin e Timotheé Chalamet em 'Duna'
Imagem: Warner

Desde seu lançamento, e de suas continuações, "Duna" ampliou as possibilidades narrativa da fantasia e da ficção científica, inspirando gerações de autores, artistas e cineastas. As semelhanças com "Game of Thrones", por exemplo, são são incidentais. George Lucas nunca escondeu sua influência para a construção da mitologia que sustenta "Star Wars". Hayao Myiazaki citou "Duna" como a base de seu "Nausicaä E o Vale do Vento". A obra de Herbert encontra-se no mesmo patamar de "O Senhor dos Anéis" e do trabalho de Edgar Rice Borroughs.

Por isso surpreende a demora em o cinema arriscar uma outra tradução desse mundo tão vasto e cheio de possibilidades. Talvez a reticência dos produtores tenha como causa o fracasso da primeira tentativa. Foi em 1984 que David Lynch, então um jovem diretor com "Eraserhead" e "O Homem Elefante" no currículo, arriscou levar o mundo de Herbert ao cinema. Diz a lenda que Lynch queria fazer "O Retorno de Jedi" e, ao ser preterido por Richard Marquand, voltou seu olhar para "Duna".

Mas não era para ser. Apesar da imensa criatividade em transpor as palavras de Herbert para o cinema - os gigantescos vermes de areia de Arrakis, trazidos à vida pelo artista de efeitos especiais Carlo Rambaldi, ainda tiram o fôlego -, "Duna" sofreu interferência pesada do produtor Dino De Laurentiis, que removeu uma hora do primeiro corte de Lynch e adicionou ao lado do diretor novas cenas que condensavam e simplificavam a trama. Incompreensível e reduzido a um melodrama intergaláctico de visual arrebatador, "Duna", que trazia um estreante Kyle MacLachlan como Paul Atreides, foi um fracasso arrebatador.

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Kyle MacLachlan na versão de David Lynch para 'Duna', de 1984
Imagem: Reprodução

O novo "Duna" começou a tomar forma em 2016, quando Denis Villeneuve assumiu o comando da produção. Não poderia estar em melhores mãos. Revelado ao mundo com o drama "Incêndios" em 2010, o cineasta canadense primeiro mostrou sua proficiência em dramas urbanos como "Os Suspeitos" e "Sicario", antes de experimentar a fantasia e a ficção científica com "O Homem Duplicado", "A Chegada" e, principalmente, em "Blade Runner 2049".

A ousadia em continuar um dos maiores clássicos do gênero só não foi maior que seu resultado, um thriller neo noir visualmente deslumbrante que equilibrou o escopo da construção de um mundo futurista estranhamente familiar com os temas de busca pela identidade e legado tecnológico tão bem explorado por Ridley Scott no filme original.

"Duna", entretanto, é um animal diferente. Villeneuve encarou seu "Blade Runner" como a extensão das ideias, visuais e filosóficas, apresentadas anteriormente por Ridley Scott. O livro de Frank Herbert, por outro lado, acompanha o diretor desde a adolescência, uma obsessão que permeia sua carreira. "O filme de David Lynch tem qualidades irrefutáveis, mas não me impressionou porque não enxerguei ali as imagens de meus sonhos", disse. "O que eu tentei fazer foi uma adaptação de meus sonhos."

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O diretor Denis Villeneuve e Javier Bardem no set de 'Duna'
Imagem: Warner

O primeiro trailer apresenta o protagonista, Paul, agora interpretado por Timotheé Chalamet, filho único de Lady Jessica (Rebecca Ferguson) e do duque Leto Atreides (Oscar Isaac). No papel de herdeiro, ele precisa ter controle total de suas habilidades físicas e mentais para garantir a longevidade do reino de sua "casa" em Arrakis.

A maturidade, porém, desperta em Paul poderes metafísicos e visões futuristas, revelando aos poucos seu papel na libertação do planeta e de seu povo nativo, os Fremen. Como "escolhido", ele também pode controlar os gigantescos vermes de areia que dominam o subterrâneo de Arrakis. O elenco absurdo ainda traz Josh Brolin, Jason Momoa, Javier Bardem e Zendaya.

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Um gigantesco verme de areia, criaturas que habitam o mundo de 'Duna'
Imagem: Warner

"Duna" apresenta-se em um mundo fragmentado, não apenas pela pandemia do coronavírus, mas também por pressões políticas, alavancadas pelas eleições presidenciais americanas, que podem marcar um momento de renovação ou uma descida ainda mais íngreme para o abismo do obscurantismo representado por Donald Trump. Os temas do filme, que vão de conquista global a ecos colonialistas e supremacia branca, além do fanatismo ideológico e religioso, reverberam no mundo real com força inegável.

O futuro, nesse momento, ainda é incerto. Aos poucos os cinemas se preparam para abrir suas portas e cumprir sua função de templo em que uma experiência coletiva como "Duna" ganha significado além do entretenimento. O mundo, afinal, é feito de ideias. E o mundo apresentado por Denis Villeneuve parece um lugar fascinante para ver ideias traçadas há mais de cinco décadas, e ainda tão relevantes, traduzidas pelas lentes de um diretor superlativo. Sua estreia está agendada para 18 de dezembro. Três meses nunca pareceram tão decisivos.