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Opinião

A lua é Flicts e feliz é o menino maluquinho. Valeu, Ziraldo!

"Me peguei aqui pensando naquele tempo em que vivíamos grudados. Você era mesmo um companheirão. Lembro de como ri quando você me mostrou o desenho do Pedro Alvares Cabral de touca. Sempre admirei sua leveza e seu humor, Maluquinho, um jeito bonito de levar a vida. Não é por acaso que você virou o cara mais legal do mundo."

Releio a carta que escrevi para o camarada de panela na cabeça quando ele completou 40 anos. Volto a lembrar do tempo em que vivíamos grudados. Não é fácil digerir a morte de Ziraldo, artista fundamental desde a infância —a minha e a de incontáveis outros brasileiros.

Nenhum livro marcou tanto meus (ou nossos) primeiros anos de vida quanto "O Menino Maluquinho". A obra vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Mexeu com o imaginário, apresentou o mundo dos livros, virou amigo de uns tantos milhões. Nas redes, choro. A comoção e o luto por Ziraldo comprovam o quanto ele é querido.

A história da cor deslocada, triste, que não consegue compreender por que não brilha tanto quanto as outras também vem à cabeça. Conforta vê-la pipocar nas homenagens de outros leitores. "Flicts" é um livro classificado como infantil, mas que comove e encanta leitores de todas as idades, desde que não estejam embrutecidos pela imbecilidade que nos faz perder a sensibilidade para tamanha beleza.

Ele não tinha sido um menino maluquinho, ele tinha sido um menino feliz, Ziraldo. A lua é Flicts, Ziraldo. Quantos artistas passam pela vida e deixam para o público dois livros tão marcantes quanto esses?

Impressiona o quanto Ziraldo foi muito além. Fez outras tiras, criou outras turmas. Escreveu mais livros infantis que são os preferidos de outros tantos bons leitores. No Pasquim, espezinhou a ditadura. Deixou uma pancada de charges marcantes que até hoje fazem sentido, seguem a cutucar poderosos e a rir da cara do horror, por mais doloroso que ele seja.

"Bota sua imaginação para funcionar, cara", disse Ziraldo na primeira vez em que estivemos juntos. Ele falava sobre a convicção de que a imaginação é mais importante do que o conhecimento. Vai ao encontro de um cartaz que certa vez desenhou com os dizeres "Ler é mais importante que estudar".

Na entrevista, falamos sobre a série que mescla os planetas do sistema solar com a obra de outros grandes artistas que Ziraldo queria apresentar para a molecada. Gente como Picasso, Van Gogh, Klimt, Miró, Matisse, Fernando Pessoa, Drummond, Shakespeare? "Quero conversar com as crianças nesse nível, não sobre coelhinho, fadinha ou sapo que a princesa beija", disse.

Antes da gravação, um momento que torço para que não saia da minha cabeça. Cheguei à Livraria da Vila da Fradique Coutinho, em São Paulo, um pouco antes do horário combinado. Ziraldo com sua assessoria já estava por lá. Cumprimentei e fui ajudar a equipe a montar os equipamentos para a filmagem.

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O tempo correu, o horário marcado passou e nada de Ziraldo aparecer. Fui novamente até ele. A cerveja que tomava já tinha multiplicado, notei. Uma long neck virou duas, algo assim, nada demais.

Eu, que nunca tive paciência para atrasos ou esperas, fui direto: estamos prontos, Ziraldo, vamos gravar? Sentando, ele me olhou e falou. Pô, você é alto, tem cara de que é bom de boxe, deixa só eu terminar essa daqui que a gente já vai mesmo. Demos risada. O papo foi mesmo ótimo.

É uma profissão que tem disso. Muitas vezes o trabalho e aquilo que é fundamental para o que nós somos se encontram. Mostramos naturalidade no momento, mas guardamos com carinho essas melhores marcas. Daí que não é fácil escrever sobre a ida de Ziraldo.

É uma morte que merece não só as nossas lágrimas, mas também as nossas melhores lembranças.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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