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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Comoção por Ernesto Paglia prova: brasileiro ainda gosta de jornalista, sim

Paglia superou 235 km a pé em sete dias para uma matéria: tem muito chão para fazer boas reportagens - Reprodução/TV Globo
Paglia superou 235 km a pé em sete dias para uma matéria: tem muito chão para fazer boas reportagens Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

29/12/2022 04h00

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Que batalha tem sido a vida do jornalista nos últimos quatro anos. O presidente que foi eleito em 2018 se dedicou de todas as formas a atacar a imprensa que insistia em fazer o que sempre fez: apurar irregularidades na conduta de políticos e governos. Em qualquer governo.

O governo achou que se voltar contra o jornalismo, que informa a verdade, seria uma boa maneira de afastar fatos indesejáveis (sobre ele e sua família) de seus eleitores. Funcionou. Grande parte dos brasileiros se habituou a se informar pelo WhatsApp, em nichos fechados onde só se diz exatamente o que se quer ouvir. Fake news virou refresco para quem não gosta de ser contrariado. E aí, um problema: ninguém pensa ou tenta entender o outro.

O jornalista profissional continuou falando, como sempre. Apurando, entrevistando, ouvindo os dois lados, escrevendo. Mas, por muitos momentos, pareceu estar falando sozinho. Ernesto Paglia, que foi demitido recentemente da Rede Globo, é desses repórteres que nunca ficou calado. Trabalhou, apurou, foi atrás da notícia nos 44 anos em que trabalhou para a emissora. Passou por oito Copas do Mundo — medida de tempo comumente usada pelos jornalistas para dizer que esse ou aquele profissional tem experiência de sobra nas redações.

A demissão de Paglia causa comoção. Primeiro, porque dá uma melancolia grande ver alguém que entra em nossas casas há tantos anos sair da TV de repente. Com Carlos Tramontina, demitido recentemente, foi o mesmo sentimento: como a gente fica sem aquela voz familiar na sala todos os dias nos trazendo o conforto da notícia verdadeira? Poxa.

Mas a tristeza que o público sente quando vemos pessoas tão competentes serem demitidas mostra um outro lado, que andava meio apagado: o público ainda gosta de jornalistas. Confia em profissionais isentos que dão notícias. Que bom. O país precisa muito disso.

O vexame contra a notícia

Durante a pandemia, a cruzada do presidente contra as notícias foi vexatória mundialmente. Foi um tal de duvidar da ciência, de vender remédio de mentira, de atrapalhar a vacinação... olhando daqui para trás, parece difícil entender o que levaria alguém a colocar obstáculos para aquilo que nos tiraria (e tirou) daquele buraco. Apesar de tudo isso, somado ao esforço diário da imprensa em veicular e incentivar a vacinação junto aos governantes que, sim, apoiavam a causa, o brasileiro se imunizou. E aqui estamos. Quer dizer, alguns de nós estamos, já que mais de 600 mil vidas se perderam por conta de tanta negligência.

É deprimente que um interesse político faça com que o povo duvide do jornalista que está dizendo apenas que as coisas são como são. Vacina funciona. Cloroquina não. Tem gente que passa fome. O desmatamento precisa ser freado. E por aí vai.

As incontáveis matérias de Paglia trataram, no passado, de assuntos ainda bem atuais. Ele cobriu as Diretas Já, que defendiam a democracia e a importância da urna nas votações. Curiosamente, tem gente protestando hoje justamente contra isso. Nos anos 80, uma reportagem sobre a trajetória do cacique Mario Juruna, primeiro deputado federal brasileiro indígena, lhe rendeu uma condecoração do Festival Internacional de Televisão em Sevilha. 40 anos depois, a diversidade na Câmara é tema de conversas sobre política. Outro trabalho recente notório foi a reportagem exibida no "Fantástico", em 2017, sobre o garimpo ilegal na Amazônia. O jornalismo sempre falou desses assuntos, como se vê. A questão é quem parou de consumir.

Desejo profundamente que Paglia não pare de nos mostrar suas reportagens. Deixar de ser repórter, digo com conhecimento de causa, ele nunca vai deixar de ser.

Desejo também que a nova fase da política brasileira abra as portas para a importância da imprensa ativa. Porque ela deve (e vai) apurar, cutucar, perguntar, escrever, incomodar e informar. Como sempre. Jornalismo bem feito nunca foi inimigo do povo, não.

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