Luciana Bugni

Luciana Bugni

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Isis Valverde: assumir não ser boa mãe é importante para ser mãe possível

Viralizou nas redes sociais a chegada de uma meia maratona em que uma mulher quase cruzando a linha encontra seus filhos no trajeto, ali colocados por um homem, provavelmente pai das crianças, seu marido. A atleta focada em terminar 21 km (como a gente cria filho e treina para correr tudo isso?), desvia das crianças, rasga a faixa e chega em primeiro lugar. Depois, abraça pessoas da equipe. Ela venceu. O momento é dela. Filhos? Depois.

Vi esse vídeo com comentários da empresária Marina Vaz, que estava correndo sua maratona corporativa enquanto o marido cuidava de seus filhos em um dia útil. A atitude do homem na corrida pode ter sido impensada. Orgulhoso pelo sucesso de sua parceira, pode não ter atentado para a importância de se colocar DEPOIS da linha que determina o fim da prova. Afinal, interromper o percurso ali com duas crianças — e toda a sua imprevisibilidade — dois metros antes da meta da atleta, poderia implicar em não deixá-la terminar a corrida. Imagina tropeçar no seu próprio filho?

A expressão, ali literal, é também metafórica. Quantas vezes a gente, focada no sucesso, tropeça nos nossos filhos? E recua, abaixa, pega no colo, descasca uma manga e serve com iogurte e granola. Se o vídeo da corredora é simbólico porque nele um homem orquestra a quase-interrupção da meta da mãe, na vida real a gente mesmo faz o serviço sozinha. Somos a corredora focada e somos também a interrupção ao nos recusarmos a aceitar que às vezes é preciso desviar do "mamãe, mamãe" e continuar correndo. É muita culpa para 24 horas só no dia.

Isis Valverde também viralizou lendo um texto da escritora Roberta Ferec em que assumia não ser uma boa mãe. No post, menciona as reuniões de escola que perdeu por conta de trabalhos, não porque foi obrigada, mas porque preferiu priorizar a própria carreira. E o fato de não ter guardado os desenhos das crianças ou ter perdido o primeiro dente de leite (suspiro dramático dessa que aqui escreve que também perdeu o dente de leite do filho e criou um incidente diplomático com uma tal de fada que ia trazer alguma coisa). Acontece. Aqui em casa aproveitei a oportunidade para explicar que a fada é uma invenção. O Papai Noel, não, esse existe mesmo (não dá para derrubar esse).

Na interpretação do texto (veja abaixo), Isis se emociona e causa identificação ao repetir várias vezes que não é uma boa mãe. Eu também não sou. A minha memória afetiva de infância revela minha mãe sentada no chão de carpete trocando Barbies comigo. Muito mais atenção do que eu dou hoje para Pokémons. Outro dia, vi a lancheira de uma amiguinha do meu filho na escola e quase chorei com a organização daquela mãe e os compartimentos para baby carrots e uvas verdes. Agora que meu filho tem 7 anos, até a barreira do ultraprocessado eu já quebrei e às vezes é bisnaguinha com requeijão mesmo que mando. Desculpe, não consigo ser perfeita, eu digo para mim mesma. Não desculpo, não, eu mesma respondo.

A cobrança e a autocobrança por ser uma boa mãe pode virar o jogo e nos tornar medianas em tudo. Como eu vou terminar esse texto se a cada vírgula eu mesma me lembro que poderia estar fazendo uma colagem, uma maquete, uma aquarela, lendo quadrinhos? E olhe que todas as atividades que citei me agradam muitíssimo mas mesmo essas, quando são obrigatórias, podem virar um fardo. O home office misturou tudo e a gente encerra todos os dias devendo para todo mundo. "Você está trabalhando ou só de bobeira?", pergunta meu filho quando me vê assoberbada no celular que ele é proibido de mexer, exceto para ligações de vídeo com as avós.

Claro que só é possível assumir não ser a melhor mãe do mundo daqui de onde teclo: o privilégio de ter escolhido um pai altamente presente e competente para dividir comigo essa função. A realidade de muitas mulheres não deixa essa opção. A rede de apoio também marca presença: outro dia, vi minha mãe ensinando os sons do X via Facetime, num tipo de sarau em que meu filho lia histórias de cá e ela aplaudia de lá. Sim, desse jeito é fácil ser uma mãe mais ou menos.

Outro dia, entramos no carro na saída da escola naquele tal de "coloca o cinto", "colocou?", "não vai pegar chiclete nenhum", "não vou mudar de música", "comeu a maçã?". Meu filho me disse que tinha caprichado muito na atividade de português e eu disse que é muito bom ter cumprido a obrigação direitinho, dá uma sensação de satisfação. Calei. Ele estranhou e perguntou se eu estava bem. Não estava e nem sabia diagnosticar se por decepções, cansaço, tristeza ou, sei lá, frescura. Disse apenas que não estava com muita vontade de conversar. "Tudo bem, filho? Vou ficar quietinha um pouco." "Tudo bem, eu também gosto de ficar quieto às vezes". Às lágrimas quase vieram. Que bom que você entende, filho.

Continua após a publicidade

Uns dois semáforos depois, me lembrei de alguma novidade de casa e contei. O assunto emendou em um diálogo. "Viu, mamãe, acabou que viemos conversando". Admitir que não é uma boa mãe é o primeiro passo para ser a melhor mãe possível. Dizer em voz alta que às vezes a gente desvia de filho só deixa o abraço do reencontro ainda mais gostoso. Mas depois da linha de chegada, claro. E essa é a gente que desenha.

Você pode discordar de mim no Instagram.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes