Não aceita cartão de crédito: a vida na ilha habitada mais remota do mundo
Marcel Vincenti
Colaboração para Nossa
31/12/2023 04h08
Quando sai à rua para trabalhar pela manhã, Kelly Green se depara com paisagens que parecem uma pintura. De um lado, montanhas cercadas por extensas relvas, por onde vaquinhas se movem calmamente. Do outro, a água do mar bate nas praias onde descansam elefantes-marinhos.
Ao redor de sua casa, não há prédios, avenidas ou engarrafamento de carros: só uma pacata e acolhedora vila onde todos se conhecem por nome e sobrenome.
Tal cenário poderia pertencer a diversas comunidades litorâneas do mundo. Mas o lar de Kelly tem algo único: trata-se de Tristão da Cunha, a ilha habitada mais remota do planeta (com esse título, inclusive, certificado pelo Guinness, o Livro dos Recordes).
O lugar é um pedaço de terra de 98 km² localizado na região sul do Oceano Atlântico —e que realmente está muito longe de tudo. O local habitado mais próximo é a ilha de Santa Helena, situada a mais de 2.100 km de distância.
Para chegar a Tristão da Cunha, que não tem aeroporto, é preciso pegar um navio na Cidade do Cabo, na África do Sul, que se encontra a mais de 2.400 km dali.
Viagem de 10 dias
A viagem, realizada em um mar agitado e com muito vento, dura entre sete e 10 dias. "Não é fácil chegar aqui", diz Kelly. "Mas, apesar de apresentar muitos desafios, nossa vida é boa. A ilha é linda e todo mundo se ajuda."
Hoje, Tristão da Cunha tem 234 habitantes, concentrados em uma vila chamada Edimburgo dos Sete Mares. Quase todos são cidadãos britânicos, visto que a ilha é, atualmente, território ultramarino do Reino Unido (sua descoberta, porém, foi realizada em 1506 pelo navegador português que dá nome à ilha).
Nessa pequena comunidade perdida no meio do Atlântico, as coisas se contam nos dedos.
Atualmente, temos dois policiais, uma escola [com aproximadamente 20 alunos entre 3 e 16 anos de idade], uma creche para crianças de até 3 anos, um banco, um mercadinho, um posto dos correios, dois médicos, alguns enfermeiros e um pequeno hospital.
Kelly Green, moradora de Tristão da Cunha
Ela diz, ainda, que não há na ilha restaurantes ou máquinas de cartão de crédito. "Quando recebemos nossos salários, vamos ao banco e pegamos nossos pagamentos em dinheiro vivo. Nossas transações são realizadas em libras esterlinas."
Pesca coletiva
Os habitantes locais trabalham com pesca e agricultura, e criam animais como vacas, patos, ovelhas e galinhas. Na temporada de pesca, é comum que se juntem para realizar trabalhos em equipe: os homens vão pescar no mar e as mulheres trabalham em um centro de processamento de peixes —tudo para garantir o alimento e a renda da comunidade (a ilha, por exemplo, é exportadora de lagosta).
O que não é produzido em Tristão da Cunha ou pescado no mar ao redor, por sua vez, só chega à ilha mediante encomendas que, via de regra, demandam semanas e até meses de espera. Entre os produtos importados estão café, chá, fraldas e itens eletrônicos.
Não temos serviço de entrega da Amazon aqui. É emocionante quando finalmente recebemos algum item encomendado. Kelly Green, moradora de Tristão da Cunha
A comunicação com o mundo exterior melhorou só recentemente: há alguns anos, a internet ainda era precária na ilha (não havia wi-fi, por exemplo). A conexão hoje em dia está mais rápida.
Os desafios dessa ilha remota não param por aí. "É difícil lidar com certas emergências de saúde. Em nosso hospital, por exemplo, é possível realizar cirurgias simples. Mas, em casos mais graves, a pessoa precisa ser enviada para a Cidade do Cabo. Isso é um grande problema", diz Kelly.
Gosto pelo isolamento
Tal isolamento, porém, tem também seus pontos positivos.
Nascida na Inglaterra, Kelly visitou Tristão da Cunha pela primeira vez em 2012, após seu pai, um diplomata inglês, ser eleito administrador da ilha. E ela adorou a natureza e a tranquilidade oferecidas pelo lugar.
Foi nessa viagem que ela conheceu o grande amor de sua vida, Shane Green, criado em Tristão da Cunha, e que iria se tornar seu marido e pai de seus dois filhos. "Minha primeira gravidez ocorreu em 2014. Naquela época, ainda não havia serviços de parto na ilha. Tivemos que viajar até a Cidade do Cabo para a minha filha nascer", conta.
A família leva hoje uma vida pacata na ilha habitada mais remota do planeta: Shane trabalha com pesca, os filhos passam parte do dia na escola, e Kelly cuida do departamento de promoção turística de Tristão da Cunha.
Entre os atrativos turísticos locais estão a escalada até o topo do vulcão Queen Mary's Peak (com mais de 2.000 metros de altitude) e a observação de aves endêmicas e de animais que visitam as areias da orla, como pinguins e elefantes-marinhos. Circular pela área não é tão difícil, há estradas e veículos motorizados nesse pedaço de terra.
Visita de cruzeiros
Mesmo com suas belezas, Tristão de Cunha ainda está longe de ser um concorrido destino de viagens. "São poucos os turistas que chegam aqui com a viagem de navio que parte da Cidade do Cabo", explica Kelly. "Mas temos recebido navios vindos de outras partes do mundo, que desembarcam passageiros por algumas horas na ilha."
Os moradores de Tristão da Cunha são profundamente enraizados nesse distante pedaço de terra. Em 1961, uma enorme erupção vulcânica fez com que a população da ilha fosse evacuada para a Cidade do Cabo, e depois para a Inglaterra. Por razões de segurança, eles não puderam retornar por mais de um ano.
O longo tempo longe de casa, porém, não foi capaz de desfazer a comunidade: em 1963, a ilha recuperou sua população.
Kelly se mostra feliz por, diariamente, se ver rodeada pelas imponentes e remotas paisagens de Tristão da Cunha ao sair de casa.
"Apesar dos desafios impostos pelo isolamento, viver em um lugar remoto e com forte senso de comunidade me dá tranquilidade. Aqui sei que meus filhos estão seguros. Quando tenho que deixá-los para ir até a Cidade do Cabo, por exemplo, sei que ninguém vai fazer mal para eles. É ótimo viver com essa sensação, que não existiria em outros lugares da Terra."