Topo

Médica freou a carreira para viver em veleiro com família: 'É meio loucura'

Especializada em três áreas da medicina, Fabiana deixou carreira no "pause" para viver no mar - Arquivo pessoal
Especializada em três áreas da medicina, Fabiana deixou carreira no 'pause' para viver no mar Imagem: Arquivo pessoal

Giovana H. Meneguin

Colaboração para Nossa

02/11/2022 04h00

Às 9h10 da manhã de uma terça-feira, a médica Fabiana Noal se preparava para o 33º Refeno, Regata Internacional de Recife-Fernando de Noronha, ao lado do marido, Gabriel, e do filho Antônio, de 3 anos.

Natural de Florianópolis, Santa Catarina, a família vive a bordo do veleiro Fabiana II desde o dia 21 de janeiro de 2021.

Mas aos 38 anos e com três especialidades médicas no currículo — cirurgia geral, cirurgia do aparelho digestivo e endoscopia digestiva—, Fabiana diz que nunca se imaginou vivendo dessa forma. Foi com a família de Gabriel, 38, que ela conheceu o mundo da vela.

"Fui descobrir a questão do veleiro depois que eu já era casada, através do tio do meu marido. E isso foi um pouco antes do Antônio nascer, em 2016", ela explica

Depois de dar uma volta de barco com o tio de Gabriel, Celso, pela Ilha da Magia durante um feriado de Carnaval, ela conta que o que sentiu foi amor à primeira vista com a vela.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fabiana trocou os centros cirúrgicos...
Imagem: Arquivo pessoal

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
...pelo veleiro com a família.
Imagem: Arquivo pessoal

A gente se apaixonou. Porque é algo autossustentável, parece um motorhome. Você cozinha, dorme, faz tudo dentro do barco. E eu fiquei encantada.

O casal então investiu em um barco, batizado Fabiana, e passou a compartilhar as saídas e viagens curtas de final de semana no perfil de Instagram @fabiana_sailing. Quando o pequeno Antônio nasceu, em 2019, a família já tinha um plano audacioso em mente.

Na Estrada - Fabiana - Médica - Veleiro - dentro do barco - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O interior do veleiro Fabiana II
Imagem: Arquivo pessoal

"A gente dizia 'quando ele fizer 6 anos, vamos juntar uma grana e fazer três anos sabáticos' [para] dar a volta ao mundo de veleiro", a médica comenta aos risos.

Mas não demorou muito para os seis anos virarem alguns meses.

Aí a pandemia mudou tudo

Os planos mudaram com a pandemia de covid-19, no início de 2020. "Eu estava nessa terceira especialidade, e com a correria eu não via o Antônio dormir, não via ele acordar, eu não tinha tempo pra nada. Então eu comecei a me questionar 'por que eu vou esperar ele fazer 6 anos pra realizar esse sonho de morar no veleiro?'. E aí a gente começou a se planejar", explica.

Fabiana, médica, Na Estrada, veleiro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Durante a pandemia, o trabalho da médica se intensificou na linha de frente
Imagem: Arquivo pessoal

De olho na liberdade que uma vida no mar proporciona, Fabiana e Gabriel venderam tudo. Móveis, apartamento, carro e até mesmo o barco, que foi trocado pelo veleiro atual, um Fast de 34.5 pés, ligeiramente maior e mais confortável para morar.

Para ela, a maioria das pessoas se planeja tanto para realizar um sonho que acaba perdendo o timing.

É meio loucura você morar num barco pequenininho e sair por aí. Não é uma coisa normal. Mas se eu esperasse mais um pouco, eu ficaria acomodada e não teria coragem de sair, sabe?

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fabiana e Antônio curtem o mar
Imagem: Arquivo pessoal

'As pancadas que o mar dá'

Saindo da capital de Santa Catarina, a família iniciou uma viagem de quase um ano rumo à Salvador, na Bahia.

O percurso pela costa brasileira, porém, foi desafiador. Para além de enfrentar o temido Cabo de São Tomé durante a travessia entre Búzios, no Rio de Janeiro, e Vitória, no Espírito Santo, Fabiana conta que ela e Gabriel precisaram se adequar para para lidar com Antônio e com os três gatos da família, que hoje vivem com parentes do casal em Florianópolis.

Na Estrada - Fabiana - Médica - Veleiro - gato - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Até os bichanos da família curtiram a viagem em alto-mar
Imagem: Arquivo pessoal

"Na época, era muita informação. A gente viu que os gatos não estavam mais felizes e levamos eles de volta para Floripa. Eles estão super bem, então a gente está com o coração tranquilo", ela explica.

E apesar das "pancadas que o mar dá", como ela diz, vieram muitas lições com a vida a bordo.

Para Fabiana, o convívio intenso, com os outros e consigo mesmo, é o maior aprendizado que a vida embarcada pode dar. "Os relacionamentos entre a família ficam muito mais profundos, porque é um espaço pequeno que você passa 24h por dia junto. E a questão de você se conhecer, [no mar] você se conhece muito mais profundamente", a médica reflete.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Essa é a atual morada da família: o Fabiana II
Imagem: Arquivo pessoal

E embora ela sinta falta de estar perto dos amigos e da família, Fabiana não tem dúvidas de que morar em um veleiro compensa, especialmente para Antônio.

Ela acredita que apesar da desvantagem do pequeno marujo não conviver muito com outras crianças — já que muitas vezes os tripulantes do Fabiana II estão isolados —, os benefícios de ter o mar como quintal de casa são muitos.

A natureza como escola

A gente está 24h por dia com ele, a gente educa do jeito que a gente quer e em contato com a natureza.

Além de já conhecer praticamente todo o litoral do Brasil, aos 3 anos Antônio já teve contato com diferentes tipos de vegetação e já viu diversas espécies de aves, peixes, caranguejos, golfinhos, tartarugas e baleias.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Antônio, que embarcou com os pais nessa viagem
Imagem: Arquivo pessoal

"Todo dia ele vê alguma coisa nova. E eu já vou aproveitando e ensinando para ele. Como ele é muito pequeno, ainda não tem aquela necessidade da escola".

Cheia de orgulho, Fabiana conta que o mais importante, entretanto, é que o pequeno Antônio sabe reparar nos detalhes e dar valor a tudo o que está ao seu redor.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fabiana posa para foto no veleiro que leva seu nome
Imagem: Arquivo pessoal

"Hoje em dia, as crianças ganham brinquedos, tudo de mão beijada? e eu acho que se eu estivesse morando em terra eu daria as coisas de mão beijada. Por que eu não vou dar os brinquedos que ele quer? Às vezes é até uma maneira de suprir a nossa ausência, 'tadinho, vamos dar, ele vai se distrair'.

E aqui é diferente, ele sabe valorizar as pequenas coisas. Isso que eu acho legal, ele vai ser uma criança diferente", reflete.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Todo dia ele vê alguma coisa nova', diz a médica sobre o filho
Imagem: Arquivo pessoal

Médica no mar?

Para abraçar a vida no veleiro, Fabiana precisou abrir mão da rotina em terra como cirurgiã e de um trabalho de 8 anos no Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). E apesar do planejamento financeiro feito por ela e Gabriel para encarar a empreitada, ela conta que os gastos com o barco foram muito maiores do que imaginavam.

"A gente teve muitos gastos com o barco pelo fato da gente fazer muitas travessias e botar ele pra rodar mesmo. Você não tem ideia que aquele motor vai quebrar ou que aquela vela que está ótima vai rasgar? e cada gasto da náutica é uma coisa estratosférica, a gente não tinha essa noção".

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Entre um porto e outro, um plantão no hospital
Imagem: Arquivo pessoal

Com isso, depois de chegar em Salvador, Fabiana voltou para Florianópolis por três meses para dar plantões. Depois, de volta à Bahia e ancorada, ela trabalhou por quatro meses em um hospital de Itaparica. Mas o esquema de trabalho em terra passou a ser inviável. "Como a gente vinha para a Refeno, eu precisei sair do plantão", esclarece.

Então ela decidiu finalmente atender uma necessidade que há tempos sentia no mundo da vela. "O cara que veleja faz tudo sozinho, ele mesmo tem que aprender a se cuidar. E os velejadores sempre vinham me perguntar 'o que você tem no kit de primeiros socorros?' ou 'o que que você acha que eu preciso ter?'".

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Nestes registro, o trio recebeu a visita inusitada de uma família de araras
Imagem: Arquivo pessoal

Fabiana explica que associou os conhecimentos médicos com a vivência no barco para montar uma consultoria de primeiros socorros no mar. "Eu adoro pré-hospitalar, que é a arte da improvisação na emergência, e no barco é isso".

A consultoria, que tem sido um sucesso entre os colegas de vela, pode acontecer online, via Zoom, e conta com treinamento de primeiros socorros e material de apoio com lista de medicamentos e orientações para casos de urgência.

Hoje Gabriel se dedica de forma integral ao barco e cuida de Antônio para que Fabiana consiga trabalhar com a consultoria. Apaixonada pela profissão, ela não pensa em ficar longe dos hospitais, desde que seja possível aliar o trabalho com a vida no veleiro.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro família toda - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A carreira continua, mas Fabiana não quer ficar longe do veleiro
Imagem: Arquivo pessoal

"É claro que se eu parar num lugar, ficar mais tempo e surgir a oportunidade de trabalhar em um hospital, eu vou. Enquanto der para conciliar? até para eu poder ir avançando na viagem".

Novos ventos, novos tripulantes

O sonho de Fabiana é chegar ao Caribe ou, quem sabe, à Polinésia Francesa. Mas os planos para os próximos meses são outros. Fabiana e Gabriel esperam o segundo filho, ou melhor, filha.

E embora a ideia inicial fosse descer a costa rumo à região de Angra e Paraty para que o bebê nascesse em um local mais abrigado, a família optou voltar a Florianópolis logo após a Refeno por conta de uma gravidez mais complicada.

Ela não sabe se a vida no mar continuará sendo uma realidade e não nega que, às vezes, a dúvida se faz presente.

Na Estrada - Médica Fabiana Veleiro - NÃO PUBLICAR - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A família prestes a crescer antes de próxima viagem
Imagem: Arquivo pessoal

Fabiana divide o segredo para lidar com esses momentos de incerteza: "Toda vez que eu fico na dúvida se é isso mesmo que eu devo estar fazendo, eu tenho esse pensamento 'se eu descobrisse hoje que eu tô com uma doença terminal e me restam poucos dias de vida, o que que eu gostaria de estar fazendo no momento?'. Eu gostaria de estar fazendo exatamente o que eu estou fazendo agora, gostaria de estar no barco, velejando, e aí eu fico tranquila, meu coração fica tranquilo".

Mas nada precisa ser perene. Por isso, a médica entende que, no futuro, os sonhos e vontades podem ser outros.