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Por que carne de boi virou estrela da mesa no Brasil. Não foi sempre assim

Brasil é maior exportador de carne de boi e está entre os cinco que mais consomem - Ribeiro Rocha/Getty Images/iStockphoto
Brasil é maior exportador de carne de boi e está entre os cinco que mais consomem Imagem: Ribeiro Rocha/Getty Images/iStockphoto

Gabrielli Menezes

De Nossa

21/09/2021 04h00

O Brasil é o país que mais exporta carne bovina. Mesmo em meio à crise provocada pelo coronavírus e à inflação, bateu o recorde mensal de 211,85 mil toneladas enviadas para fora, de acordo com a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo).

Apesar do rebanho que impressiona o mundo, a criação e o consumo de boi por aqui se trata de uma tradição construída. "Não é uma cultura brasileira, mas mundial. O colonialismo do ocidente impôs ao mundo todo a galinha, o porco e o boi", explica Carlos Alberto Doria.

Doutor em sociologia e autor do livro "Formação da culinária brasileira", o pesquisador fala sobre a substituição das carnes da terra pelos animais domésticos adotados pelos europeus no curso on-line "Hierarquia das Carnes", que tem início no sábado (25) pela Escola do Gosto.

Gravura publicada na segunda metade do século XVII: engenho movido a bois e água - Utrecht, 1682 - Utrecht, 1682
No século XVII: engenho movido a bois e água
Imagem: Utrecht, 1682
O engenho de açúcar fluminense do século XIX  - Moulin à sucre, par Rugendas, 1835 - Moulin à sucre, par Rugendas, 1835
O engenho de açúcar fluminense do século XIX
Imagem: Moulin à sucre, par Rugendas, 1835

Em entrevista a Nossa, ele conta que os cronistas coloniais apreciavam os bichos selvagens consumidos pelos índios. Porco-do-mato, tatu, tartaruga, paca, veado e macaco são exemplos.

Os bois de origem europeia foram trazidos ao Brasil pela primeira vez por volta de 1534.

Quem fornecia eram os portugueses que estavam na colônia de Cabo Verde, na África".

A caravela Galga, presente em diversos documentos históricos, era tida como a principal transportadora de bois de Cabo Verde e Açores, em Portugal, até Salvador, capital da colônia à época. Esse fluxo era incentivado pela corte na metade do século 16.

Valorizados pelo porte físico, os animais eram usados como força motriz dos engenhos de cana e se espalharam pelo litoral. "Não havia a regionalização culinária da carne bovina. O que existiu foi uma agroindústria para dar sustentação especialmente ao açúcar no Nordeste".

Com o tempo e o crescimento dos rebanhos, os bois foram direcionados para o interior. De acordo com a historiadora Maria Yedda Linhares (1921 - 2011), sesmeiros arrendavam espaços a quem tinha rebanho a fim de ocupar os territórios, já que terras livres poderiam voltar para a coroa portuguesa e serem redistribuídas.

charqueada - Domínio público via Wikimedia Commons - Domínio público via Wikimedia Commons
Charqueadas: carne seca foi do Nordeste para o Sul
Imagem: Domínio público via Wikimedia Commons

Doria diz:

"Houve uma separação dos dois setores, da cana e da pecuária. Basicamente, os bois eram usados para tração e transporte. A carne também era salgada e alimentava os escravos. Esse foi o status inicial do boi".

No final do século 18, com as secas no Nordeste, há uma transferência da carne de sol para os Pampas Gaúchos. Produtores se instalaram principalmente em Pelotas, no Rio Grande do Sul. "Lá, os bois eram abatidos pelo couro. Há registros de navios espanhóis que levavam o material para Madrid".

E o que acontecia com a carne? Deixavam no pasto para os animais, para as feras, para os índios. Era uma carne abandonada".

Valorização à mesa

Rebanho de Nelore em Mato Grosso do Sul - Erich Sacco/Getty Images/iStockphoto - Erich Sacco/Getty Images/iStockphoto
Rebanho de Nelore em Mato Grosso do Sul
Imagem: Erich Sacco/Getty Images/iStockphoto

Esse status começou a mudar de figura, de acordo com Doria, em meados do século 19. "A Europa começa a consumir mais carne. Até então, era algo restrito às classes populares e urbanas. Na nobreza não era comum. Luís XIV e Luís XV, por exemplo, só comiam o palato, que era considerado uma iguaria".

A modinha europeia foi acompanhada de uma importante inovação técnica: os navios-frigoríficos. A partir daí, o continente era abastecido de exemplares vindos da Austrália, da Argentina, dos Estados Unidos e do Brasil.

Na mesma época, os bois taurinos que dominavam o território nacional davam espaço às raças zebuínas, vindas da Ásia e mais adaptadas à criação em clima tropical.

Doria resume: "o boi que entrou no Brasil com a função de suportar economicamente os engenhos de açúcar propagou-se pelo Nordeste, pelo Sul e mais tarde pelo Centro-Oeste e se tornou, então, um item importante de exportação com a invenção do navio frigorífico".

Outras carnes pelo Brasil

Carne de tartaruga: tradição culinária da região da Amazônia - rchphoto/Getty Images/iStockphoto - rchphoto/Getty Images/iStockphoto
Carne de tartaruga: tradição culinária da região da Amazônia
Imagem: rchphoto/Getty Images/iStockphoto

O porco também foi disseminado pelo território nacional, principalmente em áreas caipiras de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Goiás. A sua criação, no entanto, se deu a princípio em nível doméstico.

"A oposição rural e urbano entre porco e boi, respectivamente, é bastante presente na hieHarquia das carnes até o século 18".

De acordo com Doria, a região que menos sofreu o que ele coloca como "colonização do gosto" no passado foi a Amazônia, onde predominava a cultura da tartaruga e do peixe-boi.