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Reportagem

Sonho de infância: ele mora em um prédio dedicado a 'Cavaleiros do Zodíaco'

16º30'S, 68º14'O
Centro de eventos Cavaleiros do Zodíaco
El Alto, La Paz, Bolívia

Oliver Mamani respirava "Cavaleiros do Zodíaco", como o faziam milhões de outras crianças dos anos 1990 na América Latina, onde o anime japonês fez enorme sucesso. Em 2023, ele atingiu o sétimo sentido: com festa na rua e shows de grupos populares, inaugurou sua mansão, toda inspirada no desenho.

Hoje médico, casado com uma farmacêutica também admiradora dos defensores da deusa Atena, Mamani é mais um exemplo dos cidadãos de El Alto, na Bolívia, que enriquecem e decidem investir num tipo de edifício que mistura área comercial, hospedagem e moradia. É uma construção típica, que ficou mais conhecida na década passada, chamada cholet.

O cholet do casal tem um salão de festas que exibe as 12 armaduras de ouro, que representam os signos do zodíaco. Da mesma maneira que boa parte dos fãs da série, o casal ignorou os protagonistas, cavaleiros de bronze, e dedicou a decoração aos ultrapoderosos (e portadores de armaduras muito mais imponentes) cavaleiros de ouro.

A pousada que funciona no andar superior tem 12 quartos, cada um com um signo. Assim todos podem se sentir representados, explicou Mamani a uma TV local.

Que lugar é esse?

Mulher observa El Alto do cholet "El Crucero de los Andes"
Mulher observa El Alto do cholet "El Crucero de los Andes" Imagem: REUTERS/Claudia Morales

La Paz é a capital mais alta do mundo, a 3.640 m de altitude. É uma metrópole assentada em uma cratera, cercada de montanhas. No alto de uma delas, fica El Alto, 4.150 metros acima do nível do mar.

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É a cidade grande ou média mais alta do mundo. Mas sua lista de atrativos parava por aí. A imensa maioria dos visitantes da Bolívia só pisa lá para embarcar ou desembarcar no Aeroporto Internacional El Alto.

Ela já passou do primeiro milhão de habitantes, e é uma das aglomerações urbanas que cresce mais rapidamente no país. Ficou maior que a própria La Paz, e com isso acumulou os problemas de sempre para uma cidade periférica de um dos países mais pobres da América Latina.

Músicos tocam no alto do cholet "El Crucero de los Andes"
Músicos tocam no alto do cholet "El Crucero de los Andes" Imagem: REUTERS/Claudia Morales

Mas foi justamente o enriquecimento da Bolívia em décadas recentes, a diminuição da pobreza extrema e a queda da desigualdade que começaram a mudar, aos poucos, a cara de El Alto. A transformação mais nítida foi a inauguração, em 2014, do teleférico que a conecta à capital.

O novo transporte facilitou, e muito, o ir e vir das pessoas. Ajudou a dar um gás no comércio, a vocação econômica de El Alto, sustento dos muitos migrantes que chegaram à cidade em décadas anteriores.

Cholet na cidade de El Alto, na Bolívia
Cholet na cidade de El Alto, na Bolívia Imagem: AIZAR RALDES / AFP
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Eram pessoas que haviam abandonado campos e minas para tentar a vida na cidade. Uma vida dura. As mulheres indígenas, com suas saias coloridas e chapéus-coco, eram as vítimas mais constantes do preconceito diário.

Então, aqueles mais bem-sucedidos, em vez de se mudar para bairros ricos em outras cidades, começaram, cada vez mais, a valorizar suas origens no lugar que, de um jeito ou de outro, os acolheu. Assim nasceu a arquitetura "cholet", termo que une "cholo" (palavra depreciativa até outro dia para se referir aos indígenas, mas que ganhou novo significado) com "chalet".

Esses chalés dos cholos são edifícios de três a sete andares, com fachadas hipercoloridas, marcadas com elementos decorativos que remetem à cultura tiwanaku, que dominou grande parte da Bolívia, e também de Peru, Argentina e Chile, por 2,5 mil anos.

Condores, onças, montanhas e flores contrastam com a paisagem árida da cidade. Os cholets muitas vezes ficam ao lado de terrenos baldios e até lixões. A ideia é que não seja um luxo excludente, com grades, guaritas ou muros de condomínio.

Cholet do Homem de Ferro, em El Alto, na Bolívia
Cholet do Homem de Ferro, em El Alto, na Bolívia Imagem: AIZAR RALDES / AFP

Isso porque o conceito principal dos cholets não está na decoração, mas no uso. Os primeiros pisos são públicos, com lojas no térreo e um salão de festas com pé-direito duplo. Somente os superiores são a moradia dos donos.

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O arquiteto Freddy Mamani é o grande divulgador da arquitetura neoandina. "Nós temos dinheiro e podemos construir de uma maneira que nos represente", disse, em uma das tantas entrevistas que concedeu a veículos especializados estrangeiros nos últimos anos.

A inspiração pode estar em elementos da cultura aimará. Ou na cultura pop, o que fez El Alto ganhar uma expansão imobiliária única (e no mínimo muito mais divertida do que a nossa profusão de varandas "gourmet" que na prática são uma extensão da área de serviço).

Alguns desses edifícios podem até não ter todas as características de uso que os enquadram como cholets, mas quando um começou na brincadeira, outros seguiram e até hoje está assim. O dos "Cavaleiros do Zodíaco", inaugurado em novembro do ano passado, é um dos mais novos.

Em janeiro, apareceu um com um Cristo Redentor na fachada. Torre Eiffel e Estátua da Liberdade também já foram homenageadas.

Cholet do Bumblebee, em El Alto, Bolívia
Cholet do Bumblebee, em El Alto, Bolívia Imagem: AIZAR RALDES / AFP

O cholet dos Transformers é dos mais famosos. Tem também um Titanic, navegando no denso mar de construções ocres sob o rarefeito ar andino. São dezenas e dezenas de prédios do tipo.

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El Alto pode ainda não ser, nem nunca vir a ser, um dos grandes destinos turísticos da Bolívia. E tudo bem, porque os cholets não estão brotando para atrair gringos atrás de "excentricidades". São deles, para eles.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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